26 de abril de 2017

Um universo e uma criatura formidáveis

Outbreak no Brasil, encadernada pela Editora Abril
Um dos primeiros confrontos com o Predador
saiu no Brasil pela Mythos
O universo expandido da série Alien ganhou força em 88 quando a editora Dark Horse começou a publicar em quadrinhos Outbreak, a sequência de Aliens, dirigido por James Cameron em 1986. Na trama, escrita por Mark Verheiden e desenhada por Mark A. Nelson, Hicks e Newt partem junto com um destacamento de colonial marines rumo ao planeta natal dos xenomorfos. Essa HQ originou uma continuidade que acabou desconsiderada em 91, quando Alien³ finalmente saiu do limbo e ganhou as telas dos cinemas em 92 no filme de David Fincher. Nesse meio tempo o sucesso dos quadrinhos da Dark Horse ocasionou o tão esperado encontro do xenomorfo com o Predador, igualmente licenciado e publicado pela mesma editora. Aliens vs Predador é outra série de sucesso da Dark Horse que infelizmente acabou sofrendo com 2 filmes fracos comparados aos bons arcos das HQs já publicadas. Ao menos os fãs tiveram jogos de videogame excepcionais derivados do confronto nos quadrinhos. É nas páginas das HQs que o confronto do xenomorfo e o Predador ganham alguma profundidade. Aliás, é nas HQs da Dark Horse que vários conceitos sobre os xenomorfos foram definidos. A colmeia, a forma de comunicação das criaturas, o ciclo da rainha alien e até mesmo o conceito de rei surgiram nas páginas das HQs e acabaram incorporando o cânon da franquia.

Edição especial brasileira da Atitude, contém a HQ Reaper/Cargo
Considero a sequência original da Dark Horse pra Aliens um arco narrativo muito interessante: os aliens acabaram tomando a Terra após o fracasso da Weiland Yutani e concorrentes e controlar os xenomorfos em cativeiro. Esse primeiro arco chegou a ser publicado no Brasil no final da década de 80 pela Editora Abril. O ponto alto da série é quando a Ripley volta no 3º arco de histórias, Female War, escrito novamente por Verheiden e ilustrado por Sam Keith quando o conflito com os xenomorfos acaba chegando no seu momento decisivo. Infelizmente o arco acaba com uma história curta que definiria o fim do domínio alien na Terra com uma solução preguiçosa envolvendo a espécie do viajante que Ripley e a tripulação da Nostromo encontram em LV-426 no filme de 79 dirigido por Ridley Scott. Daí em diante, os arcos acabam se delongando em um conceito vago de que os aliens originaram uma espécie de droga experimental que aumenta o vigor físico e a percepção do usuário. A temática em si não é tanto o problema quanto o rumo que os quadrinhos tomam, as soluções começam a ficar fáceis e o xenomorfo gradativamente deixa de ser a criatura assustadora que deveria ser. Após o lançamento de Alien³, esses arcos todos acabaram sendo desconsiderados cedendo espaço pra novas tramas isoladas, algumas muito bem escritas e desenhadas, outras simplistas envolvendo colonial marines eliminando aliens como baratas em um jogo, algo simplesmente medíocre.

Até mesmo o Batman encarou os xenomorfos!
Do período posterior a Alien³ destaco algumas favoritas como Salvation, Reaper/Cargo, Purge e Pig, HQs desenhadas por grandes mestres como Mignola, Sam Keith e Simon Bisley e que trazem um ar de Heavy Metal / Metal Hurlant aos confrontos da humanidade com o xenomorfo. Uma pena que muitas dessas HQs jamais foram publicadas devidamente no Brasil, raras exceções como a edição da Atitude que trouxe Reaper/Cargo e outras histórias curtas bem como os primeiros confrontos com o Predador e outros crossovers inusitados publicados pela Mythos. Todas essas HQs podem ser encontradas em compêndios publicados pela Dark Horse nos últimos anos, inclusive em versão digital. Atualmente os quadrinhos da série Alien se dividem em duas séries. uma envolvendo um universo comum com o Predador e os personagens e eventos mostrados em Prometheus, e Defiance escrita por Brian Wood e ilustrada por Tristan Jones e outros desenhistas nas edições seguintes. Gostei bastante de Defiance, principalmente por envolver elementos vistos em Aliens e no jogo Alien: Isolation, incluindo até mesmo uma participação especial de Amanda Ripley no primeiro número. A série envolvendo Prometheus e o Predador faz um serviço razoavelmente bom entregando respostas que o filme de Ridley Scott não entregou e que os fãs esperam ver no vindouro Alien: Covenant.

Aliens: Dead Orbit, a nova série lançada no Alien Day de 2017
Pra comemorar o Alien Day, a Dark Horse lançou hoje a série Aliens: Dead Orbit escrita e ilustrada por James Stokoe. As prévias liberadas impressionam pela beleza dos detalhes no traço de Stokoe. Conferi a edição digital e garanto que a série começou muito bem, a apresentação dos personagens e ambientação na estação Sphacteria constroem uma narrativa bacana e o traço de Stokoe surpreende pelos detalhes, aguardo ansioso pela 2ª edição prevista pra 31 de maio. Não vou entregar spoilers mas o que mais gostei além da ambientação e o traço foi o fato de o xenomorfo mal dar as caras na primeira edição, o que deu tempo de apresentar devidamente o protagonista e a estação Sphacteria. Aliás, que nome pra uma estação! Apesar de não ter uma publicação regular no Brasil, as HQs da Dark Horse já estão na história dos quadrinhos por manter tanto tempo uma franquia aos cuidados de uma mesma editora. Basta comparar com o tempo de franquias como Star Wars e Star Trek que alternam ciclos editoriais em seus históricos. Os xenomorfos nunca deixaram a Dark Horse e parece bem provável que continuem assim. Que venham mais boas HQs, os fãs agradecem!


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Daniel Rockenbach, um estranho numa terra estranha que decidiu compartilhar suas leituras sobre ficção científica em suas mais diversas manifestações.

Seu instagram é @danielrockenbach.

19 de abril de 2017

A onda Punk

*Resenha feita durante a 2ª Mostra Sci-Fi no MIS realizada entre 17 e 20 de abril de 2017 no Museu da Imagem e do Som de Campo Grande, MS.

Emilio Estevez é Otto, o Repo Man
Os anos 60 trouxeram o movimento Hippie na esperança de um mundo melhor. Esse mundo acabou não acontecendo e os filhos dessa geração que pregou paz e amor nada tinham além de desilusões. Não é equívoco dizer que é dessa falta de esperança em um amanhã melhor nasceram os Punks. Assim foi na literatura, assim foi na música e assim foi no cinema. O Clash chamava a Beatlemania de farsa, os Sex Pistols pregavam a anarquia no Reino Unido e a literatura e o cinema produziram Laranja Mecânica. Nos EUA, o que Nixon começou e nem Ford ou Carter resolveram, Reagan veio piorar e com isso, os anos 80 geraram jovens ainda menos esperançosos. Repo Man (1984) dirigido pelo iconoclasta inglês Alex Cox acompanha a vida do jovem Otto (Emilio Estevez), um garoto sem perspectiva de futuro, nenhum apoio dos pais e que só quer uma coisa: se dar bem.

Quando o jovem Otto conhece Bud (Harry Dean Stanton) ele encontra um meio de ganhar a vida mais decente que trabalhar em um k-mart qualquer: ser um repo man, o cara que toma de volta a força algo que a pessoa não tinha como pagar. Como nessa época ninguém conseguia pagar as contas, Otto e Bud teriam muito trabalho pela frente. Um belo dia Otto encontra um louco cujo carro guarda no porta-malas algo terrível, possivelmente alienígena, vai saber... esse é o "McGuffin"* do filme! Toda vez que alguém abre o porta-malas do carro, esse alguém é consumido por uma terrível radiação e isso é tudo que você precisa saber. Essa trama aparentemente desconexa e sem noção é totalmente proposital já que a ideia do filme é retratar a realidade vazia que os Punks herdaram de seus pais, algo muito bem demonstrado na cena em que Otto canta agressivamente a música de um dos muitos seriados vazios que via na TV e que não falam nada de sua geração.

Talvez esse carro não seja muito seguro...

O filme foi produzido por Jonathan Wacks and Peter McCarthy, inspirado numa ideia da dupla que queria produzir um filme que falasse sobre a realidade do jovem sem perspectiva nos anos 80. Repo Man ainda conta com a música tema de mesmo nome composta e interpretada por Iggy Pop. Com grandes atuações de Emilio Estevez e Harry Dean Stanton, o filme teve reconhecimento de público e crítica e ao longo dos anos ganhou um status de cult. Você pode encontrar Repo Man no Box Sci-Fi volume 3 lançado no Brasil pela Versátil Home Video.

*Termo popularizado por Alfred Hitchcock que descreve um objeto em um filme cujo único motivo é levar a trama adiante. Você não precisa saber o que é, contanto que saiba que ele existe e é o que desenvolve a narrativa.


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18 de abril de 2017

Gladiadores do futuro

*Resenha feita durante a 2ª Mostra Sci-Fi no MIS realizada entre 17 e 20 de abril de 2017 no Museu da Imagem e do Som de Campo Grande, MS.

Rollerball, os gladiadores do futuro
Na Roma antiga o Coliseu abrigou várias lutas épicas entre gladiadores que combatiam por suas vidas em um espetáculo pensado pra entreter as massas. Como a morte era algo certo, não restava esperança alguma aos infelizes que lá lutavam, tudo que sobrava era o pão e o circo pro povo que pouco se importava com o sangue derramado. Rollerball (1975) dirigido por Norman Jewison traz o mesmo conceito, agora pro futuro. Em 2018 as guerras acabaram, as nações também e as corporações assumiram o controle. Neste futuro distópico, cada região do planeta é controlada por uma corporação. A cidade de Houston não é mais parte dos Estados Unidos e sim parte da Corporação de Energia e assim é com todas as grandes cidades mundo afora. Existem corporações pra alimentação, saúde, entretenimento e outras tantas, todas consolidando os grandes conglomerados de outrora em suas respectivas frentes. Essa paz aparente mascara um futuro onde poucos privilegiados usufruem da boa vida e seus benefícios: quanto mais importante sua posição dentro dessa sociedade, mais poder você tem, inclusive com os homens podendo escolher até mesmo a mulher que vai viver com eles, independente dela querer ou não, tampouco pertencer a outro. Poucas afortunadas podem ser executivas independentes pelo que o filme mostra. Nesse futuro distópico, machista e alienado, o pão é garantido a todos, importantes ou não, e todos são unidos por um único esporte: o Rollerball.

Os gladiadores em ação
O Rollerball é disputado em uma arena circular por 2 times, cada time com dois motoqueiros sempre rodando a arena visando impulsionar os jogadores do time nas jogadas já que todos os demais jogadores usam patins. O objetivo de cada time é jogar a bola, uma esfera de metal maciça, no alvo localizado no círculo exterior. Cada jogador usa uma proteção similar a do futebol americano e pode usar os ombros e braços em suas jogadas. Ao menos assim era no começo já que ao longo do filme, a conveniência faz com que as corporações gradativamente alterem as regras do esporte. Se o esporte parece confuso pra você, não se preocupe, qualquer confusão é intencional. Jonathan E. (James Caan) é o grande destaque da Corporação de Energia e o herói dos fãs do Rollerball. A cada temporada Jonathan vem quebrando recorde após recorde, o que deixa as corporações cada vez mais preocupadas com o seu futuro. A trama do filme se desenvolve quando Jonathan E. é convidado a se aposentar pelo líder da Corporação de Energia, o que acaba expondo o real propósito e efeito do Rollerball.

Pausa pro hino da Corporação Sinistra
Baseado no conto The Roller Ball Murder de William Harrison publicado em 73 na revista Esquire, o filme retrata um futuro onde toda fome, miséria e violência foram erradicadas depois da última grande guerra. Apesar da situação sugerir um futuro pacífico e feliz, a realidade dos gladiadores do amanhã mascara aqui uma terrível conveniência em uma distopia assustadoramente próxima do que vemos hoje em dia com a alienação das massas. A importância do indivíduo e seu esforço é discutida nas telas na alienação de Jonathan E., o protagonista que nada conhece a não ser a violência do Rollerball. Sem isso, ele não tem propósito nessa sociedade. Esse é mais um exemplo do pessimismo com o amanhã no cinema da década de 70. Mesmo o fim das guerras pode significar um futuro vazio, que poucos podem aproveitar. 



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17 de abril de 2017

Omega Man

*Resenha feita durante a 2ª Mostra Sci-Fi no MIS realizada entre 17 e 20 de abril de 2017 no Museu da Imagem e do Som de Campo Grande, MS.

Charlton Heston, o Omega Man ou
A Última Esperança da Terra
O livro Eu sou a Lenda de Richard Matheson já ganhou outras adaptações pro cinema mas ouso dizer que nenhuma tão estilosa como a realizada em 1971 por Boris Sagal, protagonizada por Charlton Heston. Como todas as transcrições da obra pras telas, essa também não consegue capturar a essência do terror da obra-prima de Richard Matheson, o próprio autor não gostou do resultado de nenhuma das adaptações, ainda assim. acredito ser esse filme o que melhor capture a tensão da época em que o romance se baseia. A Última Esperança da Terra, também conhecido como Omega Man, foi um dos muitos filmes dos anos 70 que capturaram o medo de uma nova guerra mundial, uma guerra que poderia devastar o mundo como conhecemos. Dessa vez, o medo não vem das armas nucleares e sim da guerra biológica. É uma arma biológica que lança o mundo no caos que vemos nas telas e é essa a ameaça que o Dr. Robert Neville (Charlton Heston) dedica seus esforços a combater.

Mathias, o mutante líder do culto
As vítimas da doença não resistem à luz, principalmente luz do sol. Eles não conseguem coordenar seus pensamentos e aparentemente regridem a um estado primitivo tribal que rejeita totalmente a tecnologia e a racionalidade, abraçando a crença em um culto que venera tudo que seja avesso ao progresso da humanidade até o momento em que a guerra começou. Eles almejam um mundo puro, sem o pecado da tecnologia e Neville é o último representante do mundo que se destruiu pela guerra, Neville e suas armas, máquinas e armadilhas. Com isso o protagonista vive sozinho, crente de que ninguém mais restou e ele é o único homem com a racionalidade intacta o bastante pra tentar buscar uma forma de salvar o mundo, o Omega Man, literalmente. Destaco do filme a cena em que Neville em sua solidão vai ao cinema assistir a um filme sobre Woodstock e vê hippies falando de um mundo melhor, onde as pessoas se entendem e se amam. A ironia presente em toda a cena retrata muito do sonho que se perdeu ao longo da década de 70 quando os EUA perceberam a ferida aberta que o Vietnã representava e que essa era só uma de muitas outras. Os hippies nunca tiveram o mundo que sonharam e Woodstock nada mais foi que um devaneio juvenil. Esse gosto amargo da derrota marcou a maioria dos filmes de ficção científica lançados na década até que Star Wars aparecesse com todo seu escapismo em 77.

Fachada do cinema em que Neville assiste ao filme sobre Woodstock

Eu sou a Lenda havia sido adaptado antes em um filme que foi planejado pela produtora inglesa Hammer, a mesma dos filmes do Drácula com Cristopher Lee e Peter Cushing. Eles chegaram a encomendar o roteiro do próprio Matheson anos depois da publicação do romance em 54 mas a produção acabou colocada de lado até 64 quando uma parceria anglo-italiana retomou o projeto. Matheson não estava satisfeito com a abordagem dada ao seu roteiro, tanto que mudou seu nome nos créditos pra Logan Swanson. O filme foi rodado na Itália e teve Vincent Price como protagonista do longa que ganhou o título Mortos que Matam no Brasil, lá fora é conhecido como The Last Man on Earth. Mortos que Matam é interessante mas pessoalmente considero difícil entender a lenda do horror Vincent Price no papel principal, é algo que nunca consegui aceitar e já vi outros fãs reclamarem. Outra adaptação do livro é a protagonizada por Will Smith lançada em 2007, dessa vez com o mesmo título do livro. O filme de Francis Lawrence toma uma série de liberdades com a trama original da obra e acaba distorcendo muito do conceito tanto dos filmes anteriores quanto do livro de Matheson. Mortos que Matam e A Última Esperança da Terra podem ser encontrados no Brasil no box Sessão Dupla de Terror lançado pela Versátil Home Video. O livro Eu sou a Lenda de Richard Matheson é publicado no Brasil pela Editora Aleph e ainda está disponível nas livrarias, você pode ler a resenha do Sentinela aqui. Se você apreciar o filme, recomendo intensamente ler o livro que o inspirou, principalmente pelo terror descrito por Matheson, vale lembrar que gênios do horror como Stephen King consideram Eu sou a Lenda uma de suas maiores influências. Quanto aos filmes, indico principalmente o de 71 com o Charlton Heston, o mesmo que protagonizou outros tantos clássicos da ficção científica e que inaugura hoje a 2ª Mostra Sci-Fi no MIS.


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10 de abril de 2017

O Gafanhoto torna-se pesado

O Homem do Castelo Alto na edição mais recente da Aleph
A partir de uma visão que teve no passado e uma passagem de Eclesiastes, Philip K. Dick obteve seu primeiro grande sucesso. Ou seria Hawthorne Abendsen que ficou famoso depois de escrever um livro inteiro consultando o I-Ching, obra que o deixaria famoso mas o exilaria ao seu castelo alto? Talvez Philip K. Dick tenha tido uma visão da realidade que nenhum de nós teve, a de um mundo dividido por nazistas e japoneses e, a partir daí, ele tenha consultado o I-Ching pra descrever o mundo que visitou. Quem sabe se Hawthorne Abendsen teve uma visão do nosso mundo e decidiu fazer o mesmo? Se O Gafanhoto torna-se pesado, a passagem do Eclesiastes que Abendsen usou pra descrever um mundo onde os aliados venceram a guerra e ainda assim, também descreve uma realidade que é diferente da nossa em alguns detalhes, não importa. A ideia aqui é que existem inúmeras realidades, inclusive a que você acredita ser real. Você aprendeu nas aulas de História que o eixo perdeu a 2ª guerra mas você pode confirmar? Você estava lá? Será que não é algo que tentaram te convencer que aconteceu e no fim os inimigos tomaram o poder e você nasceu já sendo manipulado? Isso poderia parecer loucura de um escritor fajuto ou algo digno de um Borges mas na verdade não é nem um, nem outro. é O Homem do Castelo Alto, mais uma grande criação de Philip K. Dick.

Design surreal de Pedro Inoue

O Homem do Castelo Alto foi escrito por Philip K. Dick em 61 no primeiro de seus muitos períodos de isolamento. PKD deixou sua casa, a segunda mulher e seus enteados e se isolou em uma cabana com seu passatempo mais recente, criar bijuterias, e sua nova paixão, o I-Ching, sem saber que escreveria o livro que lhe renderia algum dinheiro, reconhecimento e um prêmio Hugo. Ele mascarava uma infelicidade crescente com um relacionamento em que a mulher cobrava que ele escrevesse algo de qualidade, algo que o afastasse da ficção científica barata e elevasse o seu status como escritor. Ele já havia tentado se encaixar entre os beatniks mas ele definitivamente não era beat o bastante. PKD não tinha dinheiro pra se drogar ou entorpecer com álcool, muito menos viver na boemia. Por Deus, ele mal podia comer com o que ganhava com seus contos e novelas pulp. Mas não tinha jeito, ele não sabia escrever outra coisa que ficção científica, fosse ela barata ou não. Ele até havia tentado mas o hoje cult Memórias de um artista fracassado não teve o devido reconhecimento na época. Na verdade ele conseguiu piorar ainda mais o relacionamento já complicado quando sua mulher o pressionou pra saber o quanto do livro tinha de auto-biográfico... E foi nessa situação que PKD em seu isolamento pegou todos esses elementos, consultou o I-Ching e se lembrou de uma experiência do passado em que ele acreditou ter experimentado alguns instantes em outra realidade, totalmente diferente da nossa. Uma em que sua falecida irmã Jane talvez estivesse viva e ele morto. Se você quiser saber mais sobre essa experiência e essa fase toda, leia Eu estou vivo e vocês estão mortos de Emmanuel Carrère, a melhor biografia ficcional já escrita sobre Philip Kindred Dick. Um livro excepcional, leia a resenha do Sentinela!

Arte da edição anterior
Dessa convulsão toda nasceu a ideia do Homem do Castelo Alto. PKD já conhecia a cultura alemã por ter aprendido o idioma na juventude. O I-Ching e seus princípios eram uma constante em sua vida. A partir daí PKD vislumbrou um mundo onde o eixo venceu a 2ª grande guerra e a partir daí, nazistas e japoneses dividiram as Américas e o mundo. Nesse contexto, os judeus foram praticamente extintos, os negros foram escravizados, o continente africano se tornou um deserto estéril e se você não é um dos vitoriosos, com certeza está sob o jugo deles. Estamos no anos 60 e Hitler já morreu faz tempo, de sífilis... O livro se desdobra na história de Nobusuke Tagomi, que vive em São Francisco e representa o Ministério do Comércio Exterior do Japão, de Robert Childan, um antiquário especializado no mercado de objetos históricos norte-americanos, um mercado que surgiu no pós-guerra e fascina os japoneses, Frank Frink, um judeu sobrevivente que tem um talento na fabricação de jóias, Juliana, ex-esposa de Frank e instrutora de judô nos estados do território das Rochosas, uma região aparentemente neutra, e do enigmático Sr Baynes, um suposto comerciante sueco. Este é o ponto de partida destes personagens que vão narrar os acontecimentos mas a impressão que se tem é que nenhum deles tem o total controle sobre suas vidas. Alguns consultam até o I-Ching ao longo da trama e nem todos acabam cruzando seus caminhos. É a partir desse ponto que PKD começa a narrativa, alternando entre esses personagens centrais enquanto ele mesmo consultava o I-Ching ao decidir o destino de cada um.

O curioso é isso: será que PKD teve a visão desse mundo e a partir do I-Ching apenas fez o favor de transcrever essa realidade nas páginas? Como será que o enigmático Gafanhoto torna-se pesado de Hawthorne Abendsen foi escrito? A visão da vida desses personagens e as situações vividas por eles e aqueles que se relacionam é obra do acaso do oráculo chinês ou PKD inventou tudo isso? Se inventou ou não, não é esse o ponto da obra de fato. O grande questionamento da obra gira em torno daquilo que você tem como real, da história que você tem como certa e de quanto cada um de nós pensa controlar o próprio destino. O Tao que pode ser conhecido não é o verdadeiro Tao e é essa a impressão que temos sobre os diferentes destinos que cada personagem toma na narrativa do Homem do Castelo Alto. É daí que se extrai a riqueza do texto de Philip K. Dick: da consciência que toda realidade é questionável, ela depende apenas do ponto de vista, de vencedores e vencidos, de forças que nenhum de nós pode controlar.

Se você espera um romance envolvendo ação e violência, drama e tensão envolvendo nazistas sendo enfrentados por uma resistência, vá jogar Wolfenstein. Não é esta a ideia de O Homem do Castelo Alto. Nesse sentido não recomendo nem o excelente seriado da Amazon, ainda que este represente uma resistência enfrentando japoneses e nazistas. Muita gente lê o livro e se frustra em um primeiro momento por não se dar conta que a real discussão aqui é a própria realidade e como a percebemos. Frank Frink pode ser visto como a frustração de PKD incorporada num personagem, ele também cultivava o hobby de manipular bijuterias, Hawthorne Abendsen pode ser visto como um alter ego de PKD, um autor cujo enigmático livro fala de outra realidade. No fim, o que mais interessa sobre o livro é justamente a menção de Terry Gilliam na contra-capa da edição mais recente do livro pela Editora Aleph: "Para todos aqueles que estão perdidos neste labirinto interminável de realidades multiplicáveis, um lembrete: Philip K. Dick já esteve aí". Esteja ciente disso ao ler O Homem do Castelo Alto e quem sabe você não abrirá também suas perspectivas? Boa leitura!


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20 de janeiro de 2017

O Fantasma da Concha

The Ghost in the Shell de Masamune Shirow foi publicado no Japão entre 89 e 90 e desde então é o marco máximo do cyberpunk na cultura japonesa colocando o mangá no mesmo patamar de clássicos do gênero como Neuromancer de William Gibson ou Snowcrash de Neal Stephenson. Mechas, robôs e computadores sempre estiveram presentes nos mangás de ficção científica mas foi Ghost in the Shell que abraçou definitivamente o cyberpunk em toda sua essência. Nas páginas do mangá o leitor encontrará próteses cibernéticas, interação com redes de computadores em um mundo onde todos estão conectados, intrigas corporativas e até mesmo uma matrix parecida com a vista em Neuromancer.


Parabéns à JBC pelo capricho na edição!
A edição nacional publicada recentemente pela Editora JBC em formato único traz a história da Major Motoko Kusanagi e seus companheiros da Seção 9, uma agência de segurança e inteligência que responde ao Ministério de Assuntos Internos. No mangá a Major e seus companheiros Batou, Togusa e Ishikawa trabalham como operativos especiais, aparentemente ligados ao próprio Ministro e que, ao final do primeiro capítulo, acabam formando a equipe da recém formada Seção 9 sob comando do misterioso Aramaki, o "cara de macaco". Essa é uma das muitas diferenças entre o mangá e o anime de 95 dirigido por Mamoru Oshii: no filme Motoko e seus companheiros são apresentados como membros da Seção 9 desde o princípio e não contam com o auxílio dos fuchikomas, mechas que poderiam ser descritos com "tanques aracnídeos" operados por uma inteligência artificial que só foram aparecer nas telas no anime serializado Stand Alone Complex. Apesar de terem algumas sequências em comum, o anime adapta muito do mangá mantendo apenas a essência da trama em torno do enigmático Mestre dos Fantoches.

A Major Motoko Kusanagi em todo seu esplendor.
Alternando capítulos com espionagem, terrorismo e intrigas políticas/corporativas, Masamune vai apresentando gradativamente um futuro onde implantes cibernéticos e inteligências artificiais são parte do cotidiano de todos. A protagonista Motoko Kusanagi tem o corpo praticamente todo composto por elementos cibernéticos bem como seus companheiros da Seção 9, exceto Togusa que apesar de ter um link cerebral como todos os demais, tem seu corpo original intacto. Esse elemento de humanidade em meio à artificialidade acaba orientando a trama, desenvolvendo várias divagações filosóficas do autor sobre o que é a vida e a existência da alma com uma boa dose de fan-service, claro. Entre momentos de descontração ou pura ação e adrenalina, o autor acaba inserindo pequenos questionamentos existenciais que aos poucos vão se tornando grandes discussões ao longo da narrativa, algo que enriquece e muito a escrita e o traço de Masamune Shirow.


Uma das muitas sequências de ação.
O futuro conectado de Ghost in the Shell ainda distingue limites como nações e corporações mas a sensação que se tem no decorrer das páginas é que essa conectividade toda torna esses conceitos obsoletos dentro de um mundo digital. As intrigas políticas se limitam ao relacionamento entre países dominantes e dominados, intrigas corporativas e corrupção, elementos que mostram a degradação das instituições públicas, dependentes de limitações físicas e procedimentos burocráticos. A "tecnocracia" é um elemento constante no mangá e em muitos momentos, corporações e membros do governo conspiram em favorecimento próprio. Não existe nada mais cyberpunk que instituições conspirando contra o indivíduo!


O futuro cyberpunk de Ghost in the Shell em toda a sua grandeza.
The Ghost in the Shell é uma obra essencial ao cyberpunk e é também um marco na cultura japonesa. Outros mangás como Gunnm de Yukito Kishiro também trazem ciborgues em um futuro distópico mas ainda estão distantes do cyberpunk tradicional, algo que Ghost in the Shell incorporou de vez à cultura oriental. Animes como Lain, Ergo Proxy, ou mesmo filmes como Matrix trazem vários dos elementos vistos em Ghost in the Shell. O mangá ainda teve duas sequências escritas e desenhadas por Shirow: Man-Machine Interface e Human Error Processor. Resta esperar que a JBC continue o excelente trabalho nesse volume e publique as sequências, ainda inéditas por aqui e que desenvolvem ainda mais a trama apresentada em Ghost in the Shell. Quem sabe eles também não tragam pro Brasil outros mangás de Shirow como os excelentes Dominion e Appleseed? #ficaadica


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\\*observacao1
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Observação sobre as notas do autor.
- Evite as notas do autor durante leitura a todo o custo! Elas não acrescentam nada ao desenvolvimento da trama, quebram o ritmo da leitura e ainda confundem o entendimento da narrativa. Ler as notas posteriormente, com calma, visualizando a cena, permite perceber a criação de cada conceito imaginado pelo autor na construção do mangá, mesmo quando os conceitos são fictícios. É como assistir um filme com comentários, aí as notas do autor são o destaque. Uma pena o aviso pra evitar as notas estar junto com o posfácio da edição nacional.
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\\*obervacao2
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- Apesar do fan-service no mangá adulto ser pensado no público masculino, não consigo ficar desconcertado com a sensualização constante das personagens femininas do mangá. Em vários momentos a Major aparece em roupas mínimas e poses sensuais. Outras ciborgues aparecem vestindo lingerie ou em situações sexualizadas, nem um pouco naturais ou justificáveis dentro do contexto da obra, salvo quando fica subentendido que são androides criadas com esse propósito aos seus donos. Por que uma ciborgue precisa necessariamente usar lingerie? Nesse aspecto considero muito mais interessante a adaptação pro anime de 95 que justifica a nudez da Major com a camuflagem termo-óptica. No anime a pele da Motoko tem essa tecnologia e ela só funcionará enquanto ela estiver nua, ou seja, existe o fan-service mas ele tem ao menos uma justificativa coerente. Em tempos de discussão de gênero, isso acaba ganhando uma relevância negativa.
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14 de outubro de 2016

The man who sold the world

O Homem que caiu na Terra e seu marcador.
O Homem que caiu na Terra de Walter Tevis é uma obra peculiar. O livro foi adaptado aos cinemas por Nicolas Roeg em 76, 13 anos depois de sua publicação, e contava com ninguém menos que David Bowie no papel de Thomas Jerome Newton, literalmente o homem que caiu na Terra do título. Considero que livro e filme partem do mesmo ponto, com o mesmo Thomas Newton. A alienação natural de Bowie nas telas, provavelmente efeito das viagens nas drogas na época das filmagens, deu ao protagonista uma decadência extremamente convincente, autêntica, algo que enriquece a adaptação e dá outra dimensão ao texto em que se baseia o filme. O antheano no livro é descrito com cabelos prateados, cacheados, e uma pele levemente bronzeada, a única semelhança com Bowie está na altura e na compleição física, ambos são muito magros. Ainda assim não consegui ter outra imagem de Thomas que não a de Bowie em minha mente, dada a marca que a interpretação dele deixou em minha mente. A capa da primeira edição nacional do livro, publicada pela Darkside Books, ajudou a manter essa impressão já que traz o Camaleão do Rock em destaque, algo que considero justo, já que filme e livro caminham juntos no meu imaginário e acredito que no de muitos outros fãs.

Uma bela tradução.
Confesso que nunca havia lido o livro de Walter Tevis até ter em mãos a edição da Darkside. Meu contato foi com o filme de Bowie através de um VHS numa locadora de minha cidade nos anos 90. Sempre considerei o filme como um de meus favoritos apesar de não parecer em nada com o que eu tinha como ficção científica até então. Apesar de contar com o mesmo produtor de Blade Runner, o filme é uma ficção científica que fala de temas diferentes, mais próximos da humanidade de hoje como o abuso dos recursos naturais e consciência ecológica. Os antheanos acabaram com os recursos naturais de seu planeta e nós estávamos fazendo o mesmo com os nossos, a diferença de O Homem que caiu na Terra pra outras ficções com esse tipo de mensagem está no que fazemos com aquele que quer apenas salvar seus semelhantes e isso sempre foi o que mais me marcou no filme e que com o livro, ganhou outra dimensão. Enquanto no filme vemos Newton se deixar corromper pelos vícios e valores humanos, no livro temos Newton se deixar levar pelo desgosto e amargura, como se nem os antheanos, tampouco os humanos, merecessem salvação.

Poster da restauração do filme em 4K.

A jornada de Newton começa no Kentucky, logo após sua chegada na Terra. Aplicando pequenos golpes, ele junta dinheiro o suficiente pra encontrar o advogado de patentes Oliver Farnsworth e assim começa seu plano fundando a World Enterprises, uma empresa que entrega ao mundo novas patentes revolucionárias em várias áreas do conhecimento, rendendo muito dinheiro aos envolvidos. As diferenças entre livro e filme começam quando surge o Professor de Química Nathan Bryce que no filme é apresentado como um cafajeste interesseiro que desenvolve um súbito interesse pela World Enterprises e no livro é apresentado como um sujeito amargurado, um professor cansado do ambiente universitário, desiludido com a idade e viúvo, alguém que apela pro álcool como válvula de escape de seu mundo enfadonho e que também acaba se interessando pelas surpreendentes inovações tecnológicas da World Enterprises. O plano de Newton consiste em juntar recursos com sua empresa pra construir uma nave que no filme visa levar recursos naturais ao seu planeta natal, Anthea, enquanto no livro visa trazer todos os antheanos sobreviventes pra Terra. Tanto no livro como no filme, são os humanos que guiam Newton pela trama, principalmente Bryce e Betty Jo (Mary-Lou no filme). Tanto no livro como no filme, é Betty quem introduz Newton ao vício do álcool, a diferença é o tom do relacionamento entre os dois, no livro algo platônico, no filme, Mary-Lou se torna mais um objeto no mundo de Newton.

Parabéns à Darkside pelo capricho! Os fãs agradecem!
É interessante notar que em ambas as mídias é Bryce quem leva Newton ao extremo: seja corrompendo o alienígena ou contaminando com sua amargura. No livro os recursos naturais também são levados em conta mas é o medo da guerra nuclear que mais assusta o alienígena já que uma guerra semelhante devastou Anthea. Ao perceber que seguimos o mesmo rumo com a nossa civilização, Newton começa a desenvolver uma espécie de cinismo quanto ao seu propósito, a salvação dos últimos antheanos e da humanidade. Walter Tevis guia o leitor nessa jornada e faz com que sintamos toda a estranheza e desgosto de Thomas Newton a cada momento de sua relação com os seres humanos. A tragédia de Newton tem sua maior metáfora no mito de Ícaro, da mesma forma que no filme, ainda que com um desenvolvimento diferente do livro. O Homem que caiu na Terra é uma grande obra, um clássico que discute a humanidade em sua essência e que foi belamente adaptado aos cinemas, mantendo a mesma discussão sobre a humanidade com o mesmo nível, ainda que sob outro prisma. Finalmente tive o prazer de conhecer o livro que inspirou esse filme que é um dos meus favoritos e que agora me revelou um livro igualmente fascinante. Recomendo a todos a leitura, principalmente agora com a edição caprichada da Darkside Books, com um acabamento gráfico fantástico, cheio de referências ao filme e ao seu astro, David Bowie, literalmente O Homem que caiu na Terra.

Se você deseja saber mais sobre o filme de Nicolas Roeg, confira a resenha do Sentinela!

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Daniel Rockenbach, um estranho numa terra estranha que decidiu compartilhar suas leituras sobre ficção científica em suas mais diversas manifestações.

Seu instagram é @danielrockenbach.