1 de junho de 2015

Visitando o Planeta dos Símios

O Planeta dos Macacos de Pierre Boulle é uma sátira de ficção científica. O texto está mais próximo de autores como Voltaire e Cyrano de Bergerac, compatriotas de Boulle, que dos tradicionais escritores da ficção científica como Clarke e Asimov. A obra conta as aventuras de Ulysse Mérou, jornalista francês que viaja junto com o Professor Antelle, seu ajudante Arthur Levain e o simpático chimpanzé Hector rumo à estrela Betelgeuse, a mais brilhante das estrelas do cinturão de Órion ou das Três Marias, como conhecemos aqui no Brasil. A jornada toma ares insólitos quando o protagonista Ulysse se vê tal como Gulliver, perdido em um planeta povoado por macacos inteligentes e humanos primitivos. A ironia da situação traz uma discussão que lembra a jornada do personagem de Jonathan Swift.

Nova edição do clássico de Pierre Boulle

O grande mérito na obra de Pierre Boulle é o choque de se ter uma sociedade cujos papéis não se invertem nos títulos mas nas espécies. Os macacos tem a inteligência mas sua sociedade, por mais que não siga exatamente os mesmos parâmetros, se parece em muito com a nossa. É o choque de se ver o animal que se espera ver em um circo ou em um laboratório ocupando o lugar do burocrata da mesa ao lado, deixando com isso de ser animal enquanto nós, ditos civilizados, ocupamos o papel dos animais. Esse choque é comum em todas as adaptações da obra no cinema, na TV, HQs e games mas aqui ele é discutido de uma forma mais profunda e consistente, sem a influência do medo da guerra nuclear ou mesmo as amarras de se imaginar que o protagonista estava o tempo todo na Terra. Aqui os macacos também se dividem em Gorilas, fortes e políticos, Orangotangos, detentores do conhecimento e costumes, e os Chimpanzés, inteligentes e criativos, porém sempre a serviço dos anteriores.

Nova edição e a antiga, o astronauta Taylor do filme de 68 no meio

O que diferencia livro e filme é o tom menos aventuresco do original, aqui tudo é devidamente documentado pelo narrador e protagonista no pergaminho encontrado pelos viajantes em uma garrafa no começo da narrativa. Vale aqui destacar a grande sacada da Editora Aleph ao distribuir o release do livro em uma garrafa, coisa de quem não apenas editou e imprimiu o livro mas também se deu ao trabalho de ler! Antigamente, os livros de ficção científica eram editados como um livro comum, sem uma preocupação com a arte usada na capa ou quaisquer detalhes maiores. Muitas capas de livros de ficção científica do Clube do Livro por exemplo, saíram com capas com fotos de filmes que nada tinham a ver com a trama dos livros em questão. Fuga no Século 23 (Logan's Run) ilustrou vários romances de ficção da editora vide exemplos como a capa da coletânea A Ameaça da Terra de Robert A. Heinlein.



A jornada descrita no pergaminho se dá rumo à gigante vermelha Betelgeuse em uma expedição planejada pelo Professor Antelle e seu ajudante, Arthur Levain e devidamente documentada pelo jornalista Ulysse Mérou. Ao chegar no destino, o professor decide pousar a escuna no 2º planeta do sistema ao qual eles nomeiam Soror. Logo na descida eles detectam uma civilização industrial na superfície do planeta o que faz o professor achar que a escolha do destino foi um sucesso. Após o pouso, não tarda muito e a expedição descobre os humanos do planeta na figura da nativa Nova, de uma beleza escultural e agilidade admirável, porém, selvagem em sua essência. Nova recebe bem os viajantes em seu mundo mas a cada manifestação deles através da fala ou o uso de instrumentos é percebida com repúdio, como se esse comportamento não fosse natural da parte deles. E assim segue quando eles encontram os demais humanos até o momento em que os macacos finalmente aparecem.

Taylor, Nova, Zira, Cornelius e o jovem Lucius no clássico filme de 1968

Zaius no filme, Zeius no livro
Não existe muita diferença no encontro entre humanos e macacos no livro e no clássico filme de 1968: a expedição também encontra seu fatídico destino em uma caçada que acaba por definir o isolamento de Ulysse, o protagonista. Daí por diante temos a segunda e terceira partes em que o capturado Ulysse é estudado pela sociedade símia e onde ele encontra seus aliados no casal de chimpanzés Zira e Cornelius, e um ferrenho opositor no orangotango Zeius, aqui num papel muito menos relevante que no filme. O grande momento do livro é quando Ulysse descobre a origem da inteligência símia e os motivos para a humanidade estar no estado em que ela se encontra em Soror.

Zaius maneiro
Diferente do filme, aqui não temos uma Terra no futuro nem inconsistências como os macacos falando a mesma língua que os humanos, algo que o perspicaz astronauta Taylor interpretador por Charlton Heston em 68, poderia ter percebido de imediato e não observou em nenhum momento do filme. O destino de Ulysse, no entanto, não deixa de ser no mínimo curioso em relação ao de Taylor, na adaptação para os cinemas de 68.


Observações / Alerta - Spoilers adiante!!

1 - Um dos pontos menos relevantes do livro mas que mais me encantam é a vela que os viajantes que encontram a garrafa com o relato das aventuras de Ulysse. A vela movida pela radiação solar é um conceito que já havia sido especulado nos anos 60 mas só foi ganhar relevância anos mais tarde no meio científico ganhando inclusive espaço em contos de autores como Arthur C. Clarke. Não posso afirmar que foi o primeiro lugar em que o conceito apareceu na ficção científica mas certamente merece respeito, principalmente pela descrição da técnica. As velas solares são um conceito em desenvolvimento hoje em dia e consistem em sondas com velas capazes de captar a energia das estrelas pra se manter em atividade.

2 - A relatividade especial dita que um viajante à velocidade da luz sente o tempo passar mais devagar que alguém num referencial se movendo numa velocidade inferior. No livro é colocado que pra fazer a viagem até Betelgeuse, que fica a 642,5 anos luz da Terra, os astronautas levam 2 anos na velocidade da luz enquanto na Terra se passam 700 anos. Os astronautas levam 1 ano pra acelerar até a velocidade da luz e o outro ano desacelerando até chegar em seu destino, talvez uma forma que o autor pensou de compensar a inércia. O problema é que mesmo na relatividade restrita a velocidade da luz é o maior limite alcançável, mesmo que os viajantes alcançassem esse limite, eles levariam no referencial deles 642,5 anos pra chegar até lá enquanto no referencial de quem ficou na Terra, muito mais tempo teria passado. Pra se ter uma ideia, Proxima Centauri, a Alfa da constelação do Centauro fica a 4,5 anos luz da Terra, logo se viajantes mantivessem do começo ao fim a velocidade da luz, ainda assim levariam mais tempo pra chegar lá que os viajantes do livro. Teria sido mais fácil se Boulle tivesse considerado uma forma de se viajar mais rápido que a luz e mantivesse a noção de que o tempo pra quem se desloca a uma velocidade altíssima passasse mais vagarosamente.


Considerações sobre o livro - Mais spoilers adiante!

Poster do filme de 1968
O tema que mais me encanta no livro de Pierre Boulle é quando o protagonista Ulysse se questiona sobre a real capacidade das sociedades símia e humana em manifestar o conhecimento. O mais interessante é o meio o qual ele faz sua reflexão, a literatura. Nós aprendemos a escrever através da imitação, da mesma forma que os símios aprendem em Soror, por imitação estimulada pelos Orangotangos. A imitação nos forma e define, no entanto, eventualmente alguém cria uma obra única em uma determinada época. Na literatura, a cada Divina Comédia escrita por um Dante, centenas de variações do mesmo tema surgem, imitando a obra original sob outros pontos de vista. Algumas são realmente muito boas e indispensáveis a ponto de acrescentar alguma coisa mas ainda assim, são muito poucas. Se considerarmos o quanto criamos no nosso dia-a-dia e o quanto imitamos outros comportamentos que nos foram ensinados, percebemos o quanto nosso conhecimento e criatividade são limitados. E é isso que acontece em Soror, os valores se invertem mas a imitação é constante, seja qual for a espécie.

Particularmente, minha formação técnica em informática foi o que mais me fez pensar sobre o assunto, na computação, pouco se cria, muito se copia e mesmo quando se cria, o trabalho se dá em cima de aperfeiçoar algo que já existe. Por mais que a teoria comportamental da psicologia com todo o condicionamento e behaviourismo tenham sido descartados em função de teorias mais sofisticadas de estimulação do aprendizado, poucos são os que se desenvolvem a ponto de criar novos conceitos e manifestar a inteligência de uma forma mais elaborada. Basicamente nossa sociedade é composta de uma grande parcela de profissionais que imitam conhecimentos desenvolvidos por muitos enquanto pouquíssimos alcançam a genialidade e mudam o mundo que habitam.

Pra não dizer que tudo são flores no livro, é muito confusa a forma com que a humanidade em Soror regrediu e os símios ascenderam. Não fica claro se ao longo dos 10 mil anos da sociedade símia a humanidade vai aos poucos regredindo ou se ela regride de vez. O momento em que no laboratório do Chimpanzé Helius, companheiro cientista de Cornelius, os humanos começam a falar por ter partes do cérebro estimuladas elétricamente soa confuso. Primeiro porque ali o livro assume a memória como algo que pode ser transmitido geneticamente, algo que nunca foi provado e no máximo se restringe a funções remotas do cérebro, todas definidas pelo instinto. Usar algo não muito claro pra se acessar o registro das memórias do passado humano foi confuso e poderia ter sido resolvido de outra forma. Cornelius poderia ter encontrado gravações conservadas nas escavações antes mencionadas, qualquer tipo diferente de registro poderia ter sido usado. O laboratório de Helius causa um choque interessante em Ulysse mas daí pra justificar o trecho com os humanos de Soror falando como que possuídos por seus ancestrais não foi uma saída muito interessante tanto do ponto de vista científico como narrativo, pareceu uma improvisação. Vale destacar que apesar de um defeito aqui e ali, o próprio autor declarou que se pudesse, teria alterado o texto em alguns trechos que ele próprio não achava suficientemente desenvolvidos.

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Daniel Rockenbach, um estranho numa terra estranha que decidiu compartilhar suas leituras sobre ficção científica em suas mais diversas manifestações.

Seu instagram é @danielrockenbach.