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Capa do jogo de 89 lançado pela Interplay. |
Em 1984,
Neuromancer definia os padrões estéticos e formais que viriam a caracterizar todo o estilo
Cyberpunk: o padrão
high tech,
low life, o indivíduo oprimido pelas corporações, o governo perdendo sua autonomia perante grandes conglomerados, muito neon, cromo, mistura de culturas ocidental e oriental e principalmente, o
ciberespaço e a
matrix.
Neuromancer entregou tudo isso e muito mais numa trama intensa, cheia de reviravoltas e com uma riqueza descritiva sem igual. Aqui saem de cena os robôs comandados pela lógica de um
Asimov ou os mistérios e maravilhas futuristas de um
Arthur C. Clarke e entra a sarjeta neon estilizada, frequentada por párias com suas próteses tecnológicas, a
Yakuza, samurais de rua e os
cowboys do
ciberespaço. O próprio termo
ciberespaço surgiu antes em Cromo Queimado, conto de
Gibson publicado no Brasil pela
Editora Aleph na
Edição Especial de 30 anos de Neuromancer e que também trouxe o conto
Johny Mnemônico onde o autor introduzia a samurai de rua
Molly.
Neuromancer juntou todos os elementos pendentes no ar que
Gibson já havia trabalhado em seus contos. Em seu livro não temos um mundo virtual fantasioso como a grade em
Tron, tampouco computadores prontos pra atender comandos de voz ou mesmo imprimir quaisquer resultados aleatoriamente em um formulário contínuo, aqui temos máquinas complexas, tecnologias como os
decks de acesso à
matrix, acessórios como o
simstim que permitem o usuário dividir a consciência com outra pessoa e outros tantos dispositivos computacionais altamente sofisticados e com suas funcionalidades devidamente descritas pelo autor. Nada de servos eletrônicos prontos pra atender seus senhores com um mero comando de voz, aqui os personagens tem que interagir com a
matrix em seus
decks, quebrar virtualmente um
ICE dentro do ciberespaço e roubar dados em servidores monitorados por inteligências artificiais altamente desenvolvidas.
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Chiba City na adaptação cancelada mas podia muito bem ser a Los Angeles de Blade Runner. |
Blade Runner pode ter apresentado um futuro
noir em que
Los Angeles lembrava visualmente
Chiba City ou o
Sprawl ou em que a
Tyrrel Corp. lembrava cenários como a torre da
Sense Net mas por mais inovador que
Blade Runner tenha sido nas telas, ainda faltou o toque computacional que
Neuromancer trouxe à cultura pop. Os protagonistas
Deckard e
Case tem em comum o fato de serem caras comuns, bons no que fazem em um mundo que pouco se importa com eles, o típico papel do cara errado na hora e lugar errados que levam adiante toda boa trama noir.
Blade Runner tem uma influência estética inquestionável em
Neuromancer mas é na
cibercultura que a obra de
Gibson se diferencia dentro da ficção científica. A trama envolve o
cowboy do
ciberespaço Case que leva uma vida decadente em
Chiba City depois que seus antigos contratantes sabotaram sua capacidade de entrar na
matrix quando ele tentou se dar bem em cima deles. Desde então
Case queima suas economias em
Chiba City numa tentativa vazia de reabilitar suas capacidades em clínicas ilegais ou morrer na sarjeta levado de vez por seus muitos vícios. É quando
Case está quase no fundo do poço que ele conhece
Molly, a samurai de rua que já havia aparecido no conto
Johny Mnemônico, que salva sua vida e oferece a ele uma oportunidade de recuperar suas habilidades, contanto que aceite trabalhar com seu empregador, o misterioso
Armitage. Daí em diante os mistérios e as reviravoltas aumentam numa espiral envolvendo uma corporação secular, inteligências artificiais, muito neon, muito cromo, uma estação espacial e até mesmo
dubstep jamaicano. O mistério envolvendo
Armitage, quem ou o que é
Wintermute, quem está por trás da
Tessier-Ashpool e qual o propósito de todos os personagens serem colocados nessas situações são os motivadores dessa trama cheia de idas e vindas. A trama pode soar excepcionalmente descritiva pros leitores de hoje mas toda a prosa foi pensada em prol da construção desse mundo complexo nos mínimos detalhes. Experimente pesquisar no
Google por imagens vinculadas ao termo Neuromancer e você verá as muitas interpretações visuais da obra de
Gibson, uma mais fantástica que a outra.
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A Sense Net como seria na adaptação cancelada para os cinemas. |
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Edição de 91, da coleção Zenith. |
É fato que
Neuromancer é um romance histórico, culturalmente relevante e indispensável na biblioteca de qualquer fã de ficção científica mas há que se lembrar que mais de 30 anos depois da publicação de
Neuromancer o próprio
Cyberpunk precisou se reinventar. Não existem mundos virtuais paralelos como a
matrix, não existe ainda conectividade entre homem e máquina e mesmo quando a tecnologia surgir, definitivamente não será feita por meio de cabos.
Constructos como
Dixie Flatline ainda estão muito distantes da nossa realidade, por mais interessante que o conceito seja. Não temos ainda uma mistura de culturas ocidentais e orientais, não temos a
Yakuza comandando a máfia nem samurais de rua andando por aí, o inglês ainda é o mais próximo de um idioma universal. Mas isso não quer dizer que não temos uma
cibercultura com a internet nem que não estamos o tempo todo conectados no mundo paralelo das redes sociais, tampouco podemos negar que vivemos em um mundo onde as corporações mudam o destino de países inteiros. Isso significa que apesar de
Gibson não ter previsto o
smartphone ou mesmo conexões sem fio, ele conseguiu descrever um mundo ficcional com ideias muito próximas da nossa realidade, ainda que num contexto fantástico. Se não temos a
matrix, temos a internet, temos a cultura dos
memes e as relações virtuais, temos o mundo paralelo das redes sociais, a cultura
hacker e os
hackivistas e muitos outros fatores que lembram muito os conceitos mostrados por
Neuromancer. A
Trilogia do Sprawl pode ter elementos datados mas é inegável que
Neuromancer e suas sequências,
Count Zero e
Mona Lisa Overdrive, marcaram a cultura pop e a literatura de ficção científica. Se hoje temos séries como
Mr. Robot, filmes como
Estranhos Prazeres,
animes /
mangás como
Ghost in the Shell ou jogos como
Deus Ex,
RPGs como
Cyberpunk 2020 e outros tantos exemplos, tudo se deve ao trabalho criativo de
Gibson e seus amigos autores que levaram o
Cyberpunk da cultura alternativa ao
mainstream.
As sequências, Count Zero e Mona Lisa Overdrive
Neuromancer e
William Gibson tem história no Brasil. Além de uma das inteligências artificiais do livro estar situada no Rio de Janeiro, o livro vem sendo publicado no Brasil desde os anos 90 pela
Editora Aleph em edições revisadas e muito estilizadas. Tive o privilégio de ler todas as edições, desde a primeira publicada na coleção
Zenith em 91 às edições comemorativas de 25 e 30 anos e a mais recente, com a estilosa capa do espanhol
Josan Gonzales. Destaco a
edição de 30 anos pelos extras com os contos
Johny Mnemônico,
Cromo Queimado e
New Rose Hotel: contos que abriram o caminho criativo pra Gibson conceber o Sprawl em Neuromancer. As sequências,
Count Zero e
Mona Lisa Overdrive, também foram publicadas pela
Editora Aleph e ganharão novas edições com arte de
Josan Gonzales nas capas em breve. Se você ainda não conhece o
Sprawl ou a
matrix de
Neuromancer, aproveite. A viagem vale cada centavo.
</Curiosidades\>
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Imagem do projeto cancelado de Leary. |
*
Timothy Leary, o guru do
LSD, era um grande admirador de
Neuromancer e tentou nos anos 80 produzir um jogo pra computadores baseado em
Neuromancer, jogo que traria uma experiência inovadora pra época e traria grandes participações mas que acabou não saindo do papel. Anos depois
Leary vendeu os direitos pra
Interplay que fez um bom jogo mas sem muita relação com a trama original do livro. Você pode saber mais sobre essa história na
matéria original da Wired e nesse artigo do
The Verge, ambos em inglês. Cheguei a jogar o
adventure da
Interplay em 99 mas nunca terminei, do pouco que recordo, o jogo traz muito pouco do livro, apenas
Case,
Molly e
Wintermute. Era um bom
adventure mas um tanto cansativo, provavelmente motivo pra eu ter largado jogo. Um curiosidade: a trilha sonora é da
Devo. Você pode baixar o jogo da
Interplay aqui. Fica a torcida pro
Good Old Games (GOG) portar o jogo pros sistemas operacionais atuais.
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Página da Graphic Novel. |
*
Neuromancer ganhou uma
graphic novel em 89 publicada pela extinta
Byron Priess desenhada por Bruce Jensen e adaptada por
Tom de Harven. A série adaptou as duas primeiras partes do livro mas não chegou a ser concluída. Você pode ler a
HQ em inglês
aqui. A arte e contextualização recomendam a leitura, principalmente pra quem não conseguiu mentalizar as descrições do autor no livro.
Gibson recentemente escreveu um série em quadrinhos chamada
Archangel, publicada pela
IDW nos EUA. Você pode saber mais sobre
Archangel e o projeto inacabado de
Neuromancer nessa entrevista do autor ao
Newsrama.
* Uma adaptação aos cinemas de
Neuromancer circula por anos entre estúdios mas nenhuma tentativa foi adiante. Em 2011 artes e um roteiro chegaram a ser produzidos quando o diretor
Vincenzo Natali (
Cubo,
Splice) estava ligado ao projeto. Você pode ver as artes da adaptação de
Natali de
Neuromancer e de outros filmes cancelados do diretor nesse artigo do
Slash Film ou na matéria da
Heavy Metal. Hoje o projeto continua nas mãos da produtora
GFM mas sem diretor.
Natali dirigirá o episódio piloto de
Star Trek Discovery.
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Johny Mnemonic ou Neo? |
*
Johny Mnemônico ganhou as telas do cinema em 95 depois de o projeto de um filme independente roteirizado pelo próprio
Gibson não conseguir os recursos pra sair do papel. Com isso o filme do novato
Robert Longo ganhou vida nova como uma grande produção protagonizada por
Keanu Reeves. Várias alterações foram feitas tornando
Johny o protagonista da ação, alterando o papel de
Molly para uma nova personagem chamada
Jane. O filme é interessante em alguns momentos e mostra vários dos conceitos criados por
Gibson na trilogia do
Sprawl mas não empolga os fãs depois de tantas alterações feitas pelo estúdio. Vale como registro, da mesma forma que a adaptação do conto
New Rose Hotel de
Abel Ferrara, essa sem envolvimento direto de
Gibson. Anos mais tarde,
Keanu Reeves protagonizaria
Matrix, um filme muito mais interessante e relevante ao
Cyberpunk.
* Anos depois do lançamento de
Neuromancer, muitos fãs enxergam
Alien de
Ridley Scott como um bom exemplo de
Cyberpunk. O filme conta com personagens descartáveis na visão da inteligência artificial da
Nostronomo, o computador chamado pela tripulação de "
mãe". Todos são vistos pela corporação
Weyland Yutani como um meio pra se chegar ao
xenomorfo. Temos uma
IA atendendo os desígnios de uma corporação, protagonistas vivendo à margem da sociedade sendo tripulantes de um simples rebocador de petróleo espacial, enfim, vários elementos que mais tarde seriam caracterizados como essenciais ao
Cyberpunk. A ironia é que em 87
William Gibson foi contratado pra fazer o roteiro de
Alien 3, roteiro que teria colocado
Ripley em coma e deixado o papel principal pra
Hicks e o androide
Bishop que teriam que enfrentar uma infestação
xenomórfica numa estação espacial onde a
Weyland Yutani fazia experimentos genéticos com os
aliens. O filme acabaria com
Bishop sugerindo que eles deveriam descobrir o planeta natal dos
xenomorfos e erradicar a ameaça de uma vez por todas. No roteiro de
Gibson,
Ripley é enviada em coma pra Terra e uma nova força se apresenta, a
UPP, uma espécie de
União Soviética do futuro e que também acaba fazendo experiências com o
xenomorfo, experiências essas que naturalmente dão errado. Partes desse roteiro acabaram influenciando a sequência em quadrinhos publicada anos mais tarde pela
Dark Horse Comics mas que também acabaram sendo ignoradas quando
Alien 3 foi finalmente produzido. Você pode saber mais sobre o roteiro cancelado de
Gibson na
AVP Wikia ou se quiser, ler o roteiro na integra
aqui. Vale a pena aos fãs da série
Alien, o roteiro era bem interessante.
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Estranhos Prazeres. |
* Uma das melhores inspirações cinematográficas em
Neuromancer é o filme
Estranhos Prazeres de 1995 dirigido por
Kathryn Bigelow e produzido / roteirizado por ninguém menos que
James Cameron. O filme traz um futuro não muito distante em 1999 onde um dispositivo muito parecido com o
simstim de
Neuromancer é usado pra criar
squids: gravações de experiências vividas por outras pessoas que o usuário pode reviver depois numa espécie de realidade virtual. Você pode ter uma gravação de uma experiência sexual e vivê-la em primeira pessoa, tal como o
simstim de
Neuromancer. O protagonista
Lenny Lero (
Ralph Fiennes) contrabandeia (e usa)
squids com essas experiências até o dia em que se depara com a gravação do assassinato de uma prostituta onde deveria haver uma gravação casual. A trama leva
Lenny a se envolver com
Lornette (
Angela Bassett), uma personagem muito parecida com a samurai de rua
Molly de
Neuromancer, que o ajuda a descobrir o segredo por trás do
squid com o assassinato. A semelhança de ambientações, linguagem, os personagens e como o mundo virtual e os vícios digitais são retratados fazem de
Estranhos Prazeres o filme mais próximo de uma obra de
Gibson levada aos cinemas. Considero uma homenagem de muito bom gosto num dos poucos casos que
James Cameron não copiou ao pé da letra ideias de outros lugares. Infelizmente o filme não foi bem nas bilheterias e dividiu a crítica na época, o reconhecimento veio com o passar dos anos, principalmente pelos fãs.
Kathryn se tornou a primeira diretora a ganhar um
Saturn Awards com o filme.
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Daniel Rockenbach, um estranho numa terra estranha que decidiu compartilhar suas leituras sobre ficção científica em suas mais diversas manifestações.