16 de fevereiro de 2016

O astro que caiu na Terra


Cartaz do filme.
O Camaleão do Rock, David Bowie, criou e personificou vários personagens nos palcos. Sua carreira na música como Ziggy Stardust, Aladdin Sane e outros tantos personagens acabou levando o astro aos cinemas: primeiro com curta-metragens e breves pontas mas não tardou muito a oferecerem um longa pro astro do Rock protagonizar. E que filme! O Homem que caiu na Terra do diretor Nicolas Roeg é um clássico cult da marca maior. Não apenas por ter o exótico Bowie como protagonista: o filme contou com o produtor Michael Deeley que, anos mais tarde, produziria outro clássico, Blade Runner. O filme é ainda referência em Valis, de Philip K. Dick onde versões fictícias de Philip K. Dick e o amigo autor K. W. Jeter tornam-se obcecados pelo filme "Valis", estrelado pelo rockstar fictício Eric Lampton. Philip K. Dick se baseou na obsessão real do amigo K. W. Jeter por O Homem que caiu na Terra e seu astro, David Bowie.

O Homem que caiu na Terra é um dos primeiros filmes que traz um apelo à consciência humana pelo uso indiscriminado dos recursos naturais. Jim Lovell, Astronauta e Capitão da Apollo 13 que mais tarde foi interpretado por Tom Hanks nos cinemas, aparece no filme interpretando a si próprio em uma cena com Bowie. Essa e outras curiosidades e ousadias tornam o filme uma pérola a ser descoberta (ou redescoberta!) por fãs de David Bowie e a boa ficção científica. Lembro do filme em VHS na década de 90 quando finalmente o descobri em uma locadora. O que mais me marcou era a mensagem e as imagens surreais que o filme transmitia.

Cartaz do filme que acabou
virando capa do álbum Low.
Bowie interpreta aqui um alienígena que "cai" na Terra em busca de recursos naturais. Oculto sob o pseudônimo de Thomas Jerome Newton, o alienígena começa aplicando pequenos golpes pra angariar dinheiro pra seguir seu plano. Logo acompanhamos o personagem encontrando o advogado de patentes Oliver Farnsworth (Buck Henri) e descobrimos que Newton quer juntar dinheiro fundando uma empresa com patentes revolucionárias, obviamente oriundas de seu planeta de origem e muito mais avançadas que qualquer tecnologia humanamente conhecida. Vale notar mais uma referência nessa cena: a música que toca ao fundo é a Suíte dos Planetas, o trecho Mars, Bringer of War & Venus, Bringer of Peace, mais uma menção à origem alienígena de Newton.

Do dia pra noite, Newton e Farnsworth criam a empresa mais lucrativa do mundo, a Appl... (ops!) World Enterprises, e revolucionam o mercado com suas novas patentes tornando as concorrentes obsoletas. Logo o espectador fica sabendo que Newton quer angariar recursos pra construir uma nave pra voltar e salvar sua raça. Sua predileção por água pura e dificuldade na adaptação aos costumes humanos o forçam a permanecer recluso até o momento em que ele decide ir ao local onde "caiu" com sua nave na terra, no Novo México. Lá ele conhece a bela Mari Lou (Candy Clark) que acaba aos poucos apresentando o pior da humanidade ao ingênuo Newton. Aqui o filme tem uma semelhança muito interessante com o clássico de Robert A. Heinlein, Um estranho numa Terra estranha. As semelhanças entre a inocência de ambos os protagonistas é o que move ambas as tramas apesar de aqui a mensagem e o tom não contarem com o humor do texto de Heinlein.

Newton e seu emblemático chapéu...

Newton inspecionando as instalações da World Enterprises.
O Homem que caiu na Terra surpreende por trazer um alienígena literalmente alienado, uma figura desconexa na Terra, um Ícaro que tentou voar até o Sol e caiu por se aproximar demais do seu objetivo. Metáfora essa que reverbera em vários momentos no filme, inclusive com a presença da pintura de Bruegel "Landscape with the Fall of Icarus". O interessante é que o alienígena chega com nobres intenções mas acaba se corrompendo com a humanidade ao longo do filme. Ao invés de mostrar um alienígena tradicional de Hollywood, malvado e sistemático ou bonzinho e salvador, Bowie entrega um alienígena frágil física e mentalmente que acaba se alienando do mundo a sua volta e de sua missão original. O fracasso do personagem nada mais é que uma demonstração de como a humanidade tende a corromper não apenas o meio ambiente mas também o individuo.

A raça de Newton já observava a Terra há muito tempo, eles sabiam que a humanidade era capaz de esgotar seus próprios recursos naturais e isso dá o tom da tragédia da missão do alienígena: resgatar recursos e nos ajudar a gerenciar o que temos antes que acabemos com nosso próprio planeta. Todavia, a ganância das corporações concorrentes e a própria alienação do protagonista acabam por desfazer as nobres intenções. São poucos os flashbacks com o mundo natal de Newton mas todos são contundentes por mostrar o fracasso da missão dele. Talvez se ele obtivesse sucesso em ao menos manter o controle de sua empresa e teríamos um futuro parecido com o mostrado no clássico "Eles vivem!" de John Carpenter onde alienígenas controlam a humanidade sem seu conhecimento através da manipulação da mídia.

A aparência original do alienígena.

Newton, cada vez mais alienado, e suas muitas TVs.
O Homem que caiu na Terra é disparado meu filme favorito de Bowie. É ao meu ver o filme em que o Camaleão do Rock mais se assemelha aos personagens de suas músicas e uma grande ironia/tristeza é saber que o filme não conta com seu talento na composição da trilha sonora por uma questão de direitos autorais. Com uma mensagem trágica e comovente, O Homem que caiu na Terra é um filme ousado, tanto na forma como no conteúdo e merece ser assistido e redescoberto pelo público de hoje, fãs de ficção científica e/ou do grande David Bowie.

O filme é baseado no livro de Walter Tevis que, ainda em 2016, será publicado no Brasil pela Darkside Books. Vale ressaltar que essa resenha foi escrita apenas baseada no filme, o livro eu nunca li mas até onde pesquisei, o autor aprovou a adaptação para os cinemas. Quanto ao filme, resta torcer agora que alguma distribuidora acompanhe a Darkside e decida relançar o filme no Brasil (cof... Versátil... cof!), com certeza ele merece!



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Daniel Rockenbach, um estranho numa terra estranha que decidiu compartilhar suas leituras sobre ficção científica em suas mais diversas manifestações.

Seu instagram é @danielrockenbach.