7 de abril de 2016

Um estudo em laranja

*O texto a seguir contém spoilers sobre a trama uma vez que a proposta aqui é analisar tanto livro como a adaptação cinematográfica.

Edição especial de 50 anos
A capacidade de escolha é algo que define o ser humano. Sem o livre arbítrio, não temos nada além de um individuo sem alma, praticamente uma máquina ou, como diz o livro, uma Laranja Mecânica. Anthony Burgess publicou sua obra-prima em 1962 e teve seu texto adaptado aos cinemas por Stanley Kubrick em 1971. A inspiração pro livro veio na década de 40, durante a grande guerra, quando Burgess sofreu um ato de violência onde sua esposa foi agredida por desertores do exército norte-americano em uma situação similar a exposta na trama do livro. Após um exame médico de rotina resultar num diagnóstico fatal de um câncer no começo dos anos 60, Anthony Burgess se colocou a escrever de forma prolífica pra que pudesse deixar um espólio minimamente razoável pra esposa antes de falecer. A ironia é que o exame se provou incorreto e que Burgess sobreviveu pra ver a consagração de sua obra-prima, a Laranja Mecânica.

Verso da edição de 50 anos
Na época em que o livro foi concebido, a juventude britânica não se organizava em gangues como as da obra mas em rockers, mods e Teddy-Boys, grupos baseados nos gostos musicais e estéticos dos jovens da época. Eles podiam não falar o nadsat, idioma criado por Burgess misturando inglês e russo e utilizado por Alex e seus druguis, mas também tinham suas gírias e expressões características. A juventude violenta dos anos 60 podia pertencer a outros grupos e ter gostos diferentes mas a situação é a mesma que a dos jovens que violentaram a esposa de Burgess na década de 40 ou a do protagonista do livro, Alex, no auge da sua juventude. A edição comemorativa de 50 anos de Laranja Mecânica começa com a citação de Shakespeare em Hamlet que diz que ele desejava que não houvesse nada entre os 16 e 23 anos, que a mocidade devia hibernar nesse período de efervescência emocional. Essa citação dá a tônica da trama do livro: Alex é um jovem que aprecia a violência e música clássica e não tem nenhuma pretensão com o mundo que o cerca além de se divertir às custas dessa sociedade. Inúteis pro mundo ao seu redor, Alex e seus druguis causam apenas dor e sofrimento por onde passam. A diferença entre Alex e seus druguis está na sofisticação do protagonista que associa Beethoven (entre outros músicos no livro, apenas ele no filme) à violência e regozijo. Em um dos ataques de Alex e seus druguis, Alex encontra o autor F. Alexander e sua esposa a quem agride e violenta junto com sua gangue, perante o marido indefeso. Aqui temos Anthony Burgess expondo ao leitor seu trauma do passado de uma forma um tanto quanto lírica já que o autor F. Alexander está escrevendo A Laranja Mecânica quando Alex e seus druguis invadem sua casa.

Edição de 50 anos sem a capa protetora
Laranja Mecânica discute o livre arbítrio em sua essência. Após cometer atos de violência extrema na primeira parte da obra, Alex é preso durante uma de suas incursões noturnas em uma armação provocada pelos seus próprios companheiros que discordavam da postura do seu líder. Depois de um tempo na cadeia, Alex se oferece pra um tratamento revolucionário que propõe devolvê-lo à sociedade devidamente convertido, puro e sem desejos de executar a violência que tanto o diverte. A princípio, o protagonista acredita ser o método Ludovico apenas um caminho fácil pra fora da prisão mas mal sabe ele o que o aguarda após o tratamento. Uma vez terminado o processo, Alex passa a sentir aversão por imagens violentas e por sua amada música clássica já que o protagonista associava violência e música em sua mente deturpada. Agora Alex não tem mais escolha, ele não consegue praticar sua perversidade já que o simples desejo é capaz de provocar nele o asco mais intenso. A música então já não serve mais como escape uma vez que ela sempre esteve associada aos seus atos de violência e também desencadeia o mesmo efeito. Com isso, Alex se torna, nas palavras do autor, uma Laranja Mecânica, um indivíduo sem vontade própria, mecânico e conveniente ao estado que nada espera de Alex além do sorriso conveniente de quem enxerga nele um exemplo da eficiência da máquina pública.

Acabamento interno da edição de 50 anos

O estado é apresentado na trama como uma engrenagem indiferente ao individuo e mais preocupado com a massa. Enquanto o jovem comum estiver estudando, ele não precisa trabalhar, caso contrário, é obrigado a "robotar" nas fábricas como os pais ausentes de Alex. Aí surge a brecha que cria indivíduos como o protagonista e sua gangue. Fica implícita a sugestão de que o governo desse futuro está próximo ao de uma realidade comunista onde todos tem que trabalhar e, com isso, cabe ao estado, ineficiente, educar a juventude na ausência da família. Isso tira dos pais a tarefa de dar os valores que a escola não pode dar aos seus filhos e essa situação é decisiva na criação de jovens como Alex e seus druguis. Poucos são aqueles que não vivem nos flatblocos e tem que trabalhar todos os dias nas fábricas e estes aparentam fazer parte de uma elite intelectual/financeira distante dessa realidade e que acabam se tornando vítimas da violência de Alex e sua gangue. Após o tratamento Ludovico, Alex é liberado de sua pena como um exemplo da eficiência do estado em supostamente resolver o problema da delinquência juvenil.

Ilustração de Dave McKean
Logo que sai da cadeia, Alex acaba surpreendendo seus pais que não esperavam o retorno do filho e colocaram um inquilino em seu quarto. Rejeitado pelos pais, Alex vaga sem destino pela cidade onde a violência que ele causou se volta contra ele, quase como uma ironia do destino, causada pelas mãos daqueles que ele agrediu. O idoso agredido no começo do livro encontra Alex na biblioteca e o agride, o antigo drugui Tosco e o líder da gangue rival, Billy Boy, agora policiais já que o estado considera uma tarefa louvável aos delinquentes de outrora, o levam pra mais uma rodada de agressões em retribuição aos erros do passado. Agora todos aqueles que ele fez sofrer antes do tratamento, devolvem na mesma moeda o que Alex lhes causou. Sem poder revidar pelo tratamento que teve na penitenciária, Alex sofre e chega ao seu limite até o momento que reencontra, por obra do acaso, o autor F. Alexander que o resgata, ouve sua história e, não reconhecendo o agressor do passado, o entrega ao partido de oposição ao governo. É nesse momento que percebemos que tanto aqueles que estão no poder como aqueles que o desejam, enxergam Alex apenas como uma mera engrenagem dentro de um plano maior. Eles usam Alex em seu plano de desmoralizar o governo expondo o fracasso do método Ludovico. Aqui Alex quase encontra seu fim quando tenta o suicídio como forma de escapar de sua agonia. A esperança da oposição era trazer a opinião pública contra a situação com a tragédia de Alex, o que acaba não acontecendo já que ele sobrevive e cai nas mãos novamente do mesmo governo que o manipulou. Agora a proposta é reverter o processo do método Ludovico, desintoxicando Alex do seu antigo tratamento e permitindo a volta do livre arbítrio ao conturbado protagonista.

Ilustração de Angeli
A obra não se propõe a uma solução fácil, tanto que não sugere uma saída pro problema da violência de Alex. Com o tratamento, Alex fica à mercê da sociedade que ele tanto castigou, sem o tratamento, ele fica livre pra voltar ao seu passado violento e sua música clássica. O único elemento que explica em parte Alex é a ausência dos pais em casa mas fora a sugestão de uma justificativa pra violência, nada se oferece como possível solução futura pra um indivíduo como ele. Aqui o filme de Stanley Kubrick se encerra deixando em aberto o futuro de Alex, sugerindo que não há uma solução pro problema e que Alex seguirá o mesmo de aqui em diante. O livro, no entanto, tem mais um capítulo que apresenta um Alex resignado, com uma nova gangue mas sem o menor interesse na violência de outrora. Agora Alex não vê mais com o mesmo interesse ou a excitação de outrora em sair com seus novos amigos e praticar atos de violência. É como acontece com os jovens hoje, você pode chegar na idade que é permitido beber e começar a tomar um porre atrás do outro mas a menos que você seja um alcoólatra irredutível, chega um dia que beber e encarar a posterior ressaca já não tem mais a mesma graça de antes. Aqui a graça da violência já não tem mais o mesmo impacto pra Alex sugerindo que daqui em diante ele seguirá uma vida normal, talvez correta e provavelmente distante da violência de outrora. Isso não é uma solução fácil ou provável, ao meu ver ainda prefiro o final do filme pois acredito que um indivíduo cruel como Alex não conseguiria simplesmente abandonar sua essência agressiva por escolha mas ainda assim não deixa de ser uma opção interessante pro desfecho da narrativa.

Ilustração de Oscar Grillo
O curioso da diferença entre livro e filme é o fato de que a versão norte-americana do livro teve o capítulo final omitido pelo editor e foi justamente essa versão, sem a redenção de Alex, que chegou às mãos do diretor Stanley Kubrick. Curiosamente, Laranja Mecânica teve passagens adaptadas ao pé da letra pelo diretor, ao contrário de outros livros adaptados por Kubrick ao cinema, vide O Iluminado que ganhou várias alterações no original de Stephen King ao ser adaptado aos cinemas pelo diretor. O final do livro, omitido no filme, causa uma estranheza aos que conheceram o filme antes de ler o livro: o final do livro torna-se menos impactante pra alguns, a simpatia com a nova fase do protagonista acaba soando forçada pra muitos. O livro é um clássico essencial à literatura tanto quanto o filme é na história do cinema e, apesar das semelhanças literais entre ambos, tem em seu final um encerramento muito mais otimista pra jornada do protagonista, algo que no final do filme fica mais em aberto. Ironia ou não, ciente ou não do capítulo extra do livro, Kubrick entrega um filme visualmente impactante, cujo uso expressivo de Beethoven na trilha sonora define toda uma estética da violência seja no balé da briga entre os druguis de Alex e a gangue de Billy Boy ou quando Alex decide mostrar quem manda aos seus companheiros na cena emblemática junto ao rio. O espectador do filme acaba maravilhado pelas cenas, ainda que ciente do desgosto que deveria sentir por um protagonista tão vil. O leitor da obra de Burgess por outro lado, acaba com a sensação de confidência de Alex, algo que ao mesmo tempo choca quando é Alex quem comete a violência e causa pena quando Alex se torna uma vítima indefesa após o tratamento.

Ilustração do próprio Anthony Burgess junto com as notas do autor
Por muitos anos o filme foi censurado em vários países e chegou a ser associado a atos de violência executados por gangues juvenis na década de 70, tanto que o próprio Kubrick chegou a ser ameaçado um tempo depois do lançamento do filme, fato que o fez pedir pra retirar o filme dos cinemas na Inglaterra e determinar que assim permanecesse até sua morte, em 99. Não era intenção nem de Burgess ou Kubrick inspirar qualquer tipo de violência e, ainda assim, como em tantas outras obras polêmicas, Laranja Mecânica foi usado como justificativa/desculpa pra atos violentos executados por pessoas desequilibradas. É o preço que se paga por discutir a violência em um nível tão intimista. A nova tradução da Editora Aleph é impecável e merece todos os elogios ao tradutor Fábio Fernandes que se desdobrou pra trazer o nadsat com naturalidade ao leitor brasileiro. As traduções antigas da obra perdiam em muito a qualidade em alguns trechos e essa falha foi totalmente corrigida aqui. A editora ainda entrega duas opções ao leitor, a edição básica e a especial de 50 anos, algo que agrada tanto quem busca por uma opção econômica quanto aos colecionadores. A edição especial de 50 anos do lançamento do livro conta com extras inéditos como artigos escritos pelo próprio autor sobre o livro e o filme, uma entrevista, trechos do manuscrito original e ilustrações de Dave McKean, Angelli e Oscar Grillo, todas exclusivas da edição brasileira, tudo isso numa edição altamente estilizada, com uma produção impecável e mais uma capa icônica da Aleph.


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O Sentinela Positrônica é um Blog Parceiro da Editora Aleph.
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Daniel Rockenbach, um estranho numa terra estranha que decidiu compartilhar suas leituras sobre ficção científica em suas mais diversas manifestações.



Seu instagram é @danielrockenbach.