10 de abril de 2017

O Gafanhoto torna-se pesado

O Homem do Castelo Alto na edição mais recente da Aleph
A partir de uma visão que teve no passado e uma passagem de Eclesiastes, Philip K. Dick obteve seu primeiro grande sucesso. Ou seria Hawthorne Abendsen que ficou famoso depois de escrever um livro inteiro consultando o I-Ching, obra que o deixaria famoso mas o exilaria ao seu castelo alto? Talvez Philip K. Dick tenha tido uma visão da realidade que nenhum de nós teve, a de um mundo dividido por nazistas e japoneses e, a partir daí, ele tenha consultado o I-Ching pra descrever o mundo que visitou. Quem sabe se Hawthorne Abendsen teve uma visão do nosso mundo e decidiu fazer o mesmo? Se O Gafanhoto torna-se pesado, a passagem do Eclesiastes que Abendsen usou pra descrever um mundo onde os aliados venceram a guerra e ainda assim, também descreve uma realidade que é diferente da nossa em alguns detalhes, não importa. A ideia aqui é que existem inúmeras realidades, inclusive a que você acredita ser real. Você aprendeu nas aulas de História que o eixo perdeu a 2ª guerra mas você pode confirmar? Você estava lá? Será que não é algo que tentaram te convencer que aconteceu e no fim os inimigos tomaram o poder e você nasceu já sendo manipulado? Isso poderia parecer loucura de um escritor fajuto ou algo digno de um Borges mas na verdade não é nem um, nem outro. é O Homem do Castelo Alto, mais uma grande criação de Philip K. Dick.

Design surreal de Pedro Inoue

O Homem do Castelo Alto foi escrito por Philip K. Dick em 61 no primeiro de seus muitos períodos de isolamento. PKD deixou sua casa, a segunda mulher e seus enteados e se isolou em uma cabana com seu passatempo mais recente, criar bijuterias, e sua nova paixão, o I-Ching, sem saber que escreveria o livro que lhe renderia algum dinheiro, reconhecimento e um prêmio Hugo. Ele mascarava uma infelicidade crescente com um relacionamento em que a mulher cobrava que ele escrevesse algo de qualidade, algo que o afastasse da ficção científica barata e elevasse o seu status como escritor. Ele já havia tentado se encaixar entre os beatniks mas ele definitivamente não era beat o bastante. PKD não tinha dinheiro pra se drogar ou entorpecer com álcool, muito menos viver na boemia. Por Deus, ele mal podia comer com o que ganhava com seus contos e novelas pulp. Mas não tinha jeito, ele não sabia escrever outra coisa que ficção científica, fosse ela barata ou não. Ele até havia tentado mas o hoje cult Memórias de um artista fracassado não teve o devido reconhecimento na época. Na verdade ele conseguiu piorar ainda mais o relacionamento já complicado quando sua mulher o pressionou pra saber o quanto do livro tinha de auto-biográfico... E foi nessa situação que PKD em seu isolamento pegou todos esses elementos, consultou o I-Ching e se lembrou de uma experiência do passado em que ele acreditou ter experimentado alguns instantes em outra realidade, totalmente diferente da nossa. Uma em que sua falecida irmã Jane talvez estivesse viva e ele morto. Se você quiser saber mais sobre essa experiência e essa fase toda, leia Eu estou vivo e vocês estão mortos de Emmanuel Carrère, a melhor biografia ficcional já escrita sobre Philip Kindred Dick. Um livro excepcional, leia a resenha do Sentinela!

Arte da edição anterior
Dessa convulsão toda nasceu a ideia do Homem do Castelo Alto. PKD já conhecia a cultura alemã por ter aprendido o idioma na juventude. O I-Ching e seus princípios eram uma constante em sua vida. A partir daí PKD vislumbrou um mundo onde o eixo venceu a 2ª grande guerra e a partir daí, nazistas e japoneses dividiram as Américas e o mundo. Nesse contexto, os judeus foram praticamente extintos, os negros foram escravizados, o continente africano se tornou um deserto estéril e se você não é um dos vitoriosos, com certeza está sob o jugo deles. Estamos no anos 60 e Hitler já morreu faz tempo, de sífilis... O livro se desdobra na história de Nobusuke Tagomi, que vive em São Francisco e representa o Ministério do Comércio Exterior do Japão, de Robert Childan, um antiquário especializado no mercado de objetos históricos norte-americanos, um mercado que surgiu no pós-guerra e fascina os japoneses, Frank Frink, um judeu sobrevivente que tem um talento na fabricação de jóias, Juliana, ex-esposa de Frank e instrutora de judô nos estados do território das Rochosas, uma região aparentemente neutra, e do enigmático Sr Baynes, um suposto comerciante sueco. Este é o ponto de partida destes personagens que vão narrar os acontecimentos mas a impressão que se tem é que nenhum deles tem o total controle sobre suas vidas. Alguns consultam até o I-Ching ao longo da trama e nem todos acabam cruzando seus caminhos. É a partir desse ponto que PKD começa a narrativa, alternando entre esses personagens centrais enquanto ele mesmo consultava o I-Ching ao decidir o destino de cada um.

O curioso é isso: será que PKD teve a visão desse mundo e a partir do I-Ching apenas fez o favor de transcrever essa realidade nas páginas? Como será que o enigmático Gafanhoto torna-se pesado de Hawthorne Abendsen foi escrito? A visão da vida desses personagens e as situações vividas por eles e aqueles que se relacionam é obra do acaso do oráculo chinês ou PKD inventou tudo isso? Se inventou ou não, não é esse o ponto da obra de fato. O grande questionamento da obra gira em torno daquilo que você tem como real, da história que você tem como certa e de quanto cada um de nós pensa controlar o próprio destino. O Tao que pode ser conhecido não é o verdadeiro Tao e é essa a impressão que temos sobre os diferentes destinos que cada personagem toma na narrativa do Homem do Castelo Alto. É daí que se extrai a riqueza do texto de Philip K. Dick: da consciência que toda realidade é questionável, ela depende apenas do ponto de vista, de vencedores e vencidos, de forças que nenhum de nós pode controlar.

Se você espera um romance envolvendo ação e violência, drama e tensão envolvendo nazistas sendo enfrentados por uma resistência, vá jogar Wolfenstein. Não é esta a ideia de O Homem do Castelo Alto. Nesse sentido não recomendo nem o excelente seriado da Amazon, ainda que este represente uma resistência enfrentando japoneses e nazistas. Muita gente lê o livro e se frustra em um primeiro momento por não se dar conta que a real discussão aqui é a própria realidade e como a percebemos. Frank Frink pode ser visto como a frustração de PKD incorporada num personagem, ele também cultivava o hobby de manipular bijuterias, Hawthorne Abendsen pode ser visto como um alter ego de PKD, um autor cujo enigmático livro fala de outra realidade. No fim, o que mais interessa sobre o livro é justamente a menção de Terry Gilliam na contra-capa da edição mais recente do livro pela Editora Aleph: "Para todos aqueles que estão perdidos neste labirinto interminável de realidades multiplicáveis, um lembrete: Philip K. Dick já esteve aí". Esteja ciente disso ao ler O Homem do Castelo Alto e quem sabe você não abrirá também suas perspectivas? Boa leitura!


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O Sentinela Positrônica é um Blog Parceiro da Editora Aleph.

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Daniel Rockenbach, um estranho numa terra estranha que decidiu compartilhar suas leituras sobre ficção científica em suas mais diversas manifestações.

Seu instagram é @danielrockenbach.