18 de março de 2015

Sonhos elétricos

Empatia

s.f. Aptidão para se identificar com o outro, sentindo o que ele sente, desejando o que ele deseja, aprendendo da maneira como ele aprende etc. 
Psicologia. Identificação de um sujeito com outro; quando alguém, através de suas próprias especulações ou sensações, se coloca no lugar de outra pessoa, tentando entendê-la. 
Competência emocional para depreender o significado de um objeto, geralmente, um quadro, uma pintura etc. 
(Etm. do grego: empátheia; pelo inglês: empathy)

O que define o ser humano? O conhecimento? Suas experiências? Sua capacidade de se relacionar? Essas questões fundamentais são abordadas pela Filosofia e Psicologia desde que o ser humano tenta entender a si próprio e mesmo assim, nenhuma delas tem respostas definitivas. Philip K. Dick toma tais perguntas para si em obras como Andróides sonham com ovelhas elétricas? ao confrontar o leitor com tais questionamentos.

Nova edição da Editora Aleph com extras como a carta de PKD aos produtores de Blade Runner, a última entrevista do autor antes da estréia do filme e um posfácio do tradutor Ronaldo Bressane

O romance se passa em 1992, numa San Francisco tomada por uma poeira radioativa, resultado de uma guerra mundial chamada Terminus. Quem não saiu do planeta e optou por ficar corre o risco de sofrer com deterioração física e mental e com isso virar um dos muitos "cabeças de galinha" que vivem à margem da sociedade por terem uma capacidade mental limitada. As colonias fora da Terra são a única opção para quem deseja uma nova vida, normal e saudável, a emigração é estimulada pelo governo e a mídia e quem ainda não emigrou tem que se submeter a avaliações periódicas para determinar se ainda é um humano normal ou se a poeira radioativa não o transformou em um "cabeça de galinha".

A visão do futuro no filme esteticamente combina com a do livro

Cada emigrante recebe um andróide ao se mudar para uma das colônias, um servo capaz de realizar todas as tarefas que o dono considerar necessárias, em outras palavras, praticamente um escravo. Os andróides são parte essencial do esforço de colonização e a cada geração que passa, são cada vez mais aprimorados e desenvolvidos pelas corporações para se parecerem com os humanos que os possuem. A presença de andróides é considerada ilegal fora das colônias e isso faz com que eles sejam caçados e "aposentados" por caçadores de recompensa ligados às agências de polícia quando decidem fugir para a Terra.

Nesse futuro os animais foram na sua maioria extintos pela poeira radioativa e com isso, ter um animal vivo traz status ao proprietário bem como uma espécie de benção divina pela tarefa de proteger e cuidar do animal. Uma religião surgida no pós-guerra chamada mercerismo define essa relação com a vida animal através da sina de seu profeta, Wilbur Mercer que, através de um dispositivo tecnológico de empatia divide com cada devoto seu calvário. A necessidade de se ter um animal, seja por status ou por apelo religioso, cria um mercado em torno do comércio de animais vivos com direito à cotação de preços e tudo mais que a lei da oferta e procura pode oferecer, inclusive um mercado paralelo de falsificações mecânicas, animais elétricos que simulam perfeitamente um animal vivo.

Quem vai querer ficar na Terra depois da guerra? Venha você também para as colônias fora da Terra! 

Andróides sonham com ovelhas elétricas acompanha um dia na vida de Rick Deckard, um caçador de recompensas da polícia de San Francisco. Deckard é casado e vive uma vida frustrante por saber que sua ovelha é na verdade um animal elétrico e com isso, nem ele ou a esposa acabam conseguindo uma experiência plena de fusão com Mercer. Ele já teve uma ovelha real, no entanto ele a perdeu quando ela teve tétano e desde então foi substituída por uma ovelha elétrica. O sonho de Deckard é ganhar uma recompensa generosa caçando andróides para poder finalmente comprar um animal vivo e poder voltar a se sentir pleno novamente. Acontece que, por ironia do destino, o caçador de recompensas titular do departamento, Dave Holden, é ferido por um andróide e o desejo de Deckard acaba ficando mais próximo assim que ele recebe a tarefa de caçar os outros 6 andróides que Holden deveria aposentar.

A jornada de Deckard é parelha ao cotidiano de J. R. Isidore, um "cabeça de galinha" solitário cuja rotina é trabalhar como motorista de uma clínica veterinária que na verdade é uma oficina de reparos para animais elétricos e no tempo livre tenta experimentar a fusão com Mercer no seu dispositivo de empatia. Seu destino aparentemente é se tornar parte da bagulhificação do mundo, termo dado pelos personagens para o acúmulo de dejetos da Terra devastada numa metáfora interessante ao conceito de entropia. Enquanto Deckard executa suas investigações, o leitor acompanha o drama de Isidore até que as trajetórias de ambos se encontrem. No começo de suas investigações, Deckard conhece a corporação Rosen que criou os novos modelos Nexus 6, os modelos dos andróides que ele foi incumbido de caçar. A ele é dada a tarefa de usar o teste Voight-Kampf em um grupo de indivíduos, um teste psicológico que determina se o sujeito é ou não um andróide através de medidas do tempo de reação nas respostas além da reação física ao estímulo dado por cada pergunta do teste. Se os novos modelos Nexus 6 passarem pelo teste, toda a operação pode ir por água abaixo visto que essa é a única forma de se distinguir humanos de andróides, em um teste de empatia. Aposentar um humano por engano é um dos maiores crimes que se pode cometer portanto o teste tem que ser preciso.

Ela é artificial?

A empatia é um dos temas centrais do livro. Seja na fusão com Mercer onde as pessoas sentem empatia pela dor de seu messias ou nas medições das reações dos submetidos ao teste Voight-Kampf, a empatia é o grande tema aqui. Um andróide não consegue sentir empatia por qualquer coisa, por mais que as corporações tentem o deixar mais parecido com um ser humano, seja com memórias implantadas ou uma capacidade cognitiva maior que a de um ser humano normal. A empatia permite a plena fusão com Mercer e um andróide é incapaz de viver esse tipo de experiência. O teste Voight-Kampf consiste em medir com sensores a reação do sujeito a uma série de perguntas que provocam a sensação de empatia em variadas situações. O interessante é que em um dado momento, o próprio Deckard é confrontado pela sua falta de empatia com sua caça e isso gera um questionamento interessante quando ele é confrontado por outro caçador, ainda mais frio e metódico que ele, chamado Phil Resch.

Sentir pena pela escassez de vida animal no planeta ou pela dor do martírio de Mercer através dos dispositivos de empatia é um comportamento natural a todos os humanos mas que, com o tempo, acaba se tornando algo difícil para um caçador de recompensas. Se eles sentem pena de suas vítimas, seu trabalho se torna ineficaz ou mesmo impossível de ser realizado. Isso faz com que em dado momento Deckard se questione inclusive sobre sua própria natureza humana em um dos pontos altos da trama. Além da presença de Resch também vale destacar o papel de Rachel Rosen, personagem com um papel ambíguo e que acaba afetando o julgamento de Deckard justo pela provocação dos sentimentos de empatia e repulsa em determinadas situações. Sua presença sempre desestabiliza o protagonista colocando ele em situações de conflito pessoal.

Como seria dirigir um hovercar ou um spinner do livro / filme?

Andróides é um clássico de Philip K. Dick que trata o questionamento da realidade humana através da sua relação com a vida ao seu redor, a empatia presente ao longo de toda a trama é algo que não podemos evitar, por pior que as coisas estejam. Andróides não conseguem dividir esse tipo de experiência pois não necessariamente estão vivos, eles podem emular muito bem um ser vivo, agir como um, ter memórias que o definem como um mas é a falta de capacidade de expressar o sentimento de empatia que os entrega. Deckard em sua caçada acaba enfrentando seu calvário pessoal, assim como Mercer, quando ele é confrontado com o papel que desempenha e sua total falta de empatia por aqueles que ele caça. Ao aposentar uma das andróides ele sente um vazio e percebe que sua tarefa não é algo que combina com as lições de Mercer e assim a trama segue até que ele tem uma visão do próprio Mercer que faz com que ele finalmente aceite seu papel, ainda que não entenda.

O mais interessante é que nem mesmo Mercer está ileso na trama de Andróides, o que gera um contraponto interessante ao final do livro. Após a grande revelação do programa do Buster Gente Fina (outro arco interessante na trama) ficam pendentes várias questões. Quem realmente foi Mercer? De onde surgiu o mercerismo, qual seu propósito? Essas perguntas o autor deixa em aberto para o leitor especular enquanto a pergunta do título, os sonhos de gente como Deckard ou os andróides, ganha sua resposta ao longo da trama.

Ridley Scott e Philip K. Dick na época da pré-produção da adaptação

P.S.: Decidi não discutir os paralelos entre livro e a adaptação para os cinemas Blade Runner para abordar o tema em outros posts, um sobre o filme, outro com os paralelos entre ambos.

P.S.2: Recomendo intensamente a leitura do posfácio da nova edição da Editora Aleph escrito pelo tradutor do livro, Ronaldo Bressane. O texto esclarece muito sobre os temas da obra bem como traz uma interessante análise da relação entre livro e filme.

P.S.3: Considero a carta de Philip K. Dick aos produtores do filme o Manifesto Cyberpunk. Assim como a carta de Truffaut à Hitchcock foi o Manifesto que originou a Nouvelle Vague, o texto de PKD destaca a necessidade de mudança da ficção científica tradicional, ainda enraizada em suas viagens fantásticas e alegorias visionárias, com a qual ele próprio já destoava, para algo novo, contemporâneo, algo que o filme parecia trazer em seu cerne e que anos mais tarde se provou a grande influência do movimento Cyberpunk.


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Daniel Rockenbach, um estranho numa terra estranha que decidiu compartilhar suas leituras sobre ficção científica em suas mais diversas manifestações.

Seu instagram é @danielrockenbach.