24 de agosto de 2016

Estamos todos mortos

Mais uma capa caprichada da Editora Aleph!
Algumas biografias ultrapassam o limite da realidade quando o biografado flerta com a ficção. Philip Kindred Dick não apenas criava as suas ficções, ele as vivia intensamente. Todo autor tem um pouco de si em sua obra mas poucos trazem tanto do seu mundo em narrativas tão fora do convencional como PKD. A biografia do autor escrita pelo francês Emmanuel Carrère poderia muito bem se passar por ficção, não apenas pela abordagem de Carrère na escrita mas também pelo drama intenso e tresloucado descrito nas páginas de Eu estou vivo e vocês estão mortos. Não espere com esse livro uma biografia convencional com entrevistas e relatos de conhecidos do biografado, tampouco uma investigação documental precisa condensada numa grande reportagem. Eu estou vivo e vocês estão mortos é um romance escrito por Carrère com base em seu levantamento biográfico sobre a vida de PKD. Aqui o biografado é um personagem e o romance é sua vida, da infância aos últimos dias, cronologicamente situada pela sua breve, porém intensa, obra.

A obra de PKD guia o romance biográfico de Carrère.
Eu conhecia diversos fatos da vida de PKD antes de ler a biografia de Emmanuel Carrère: sua irmã gêmea falecida, Jane, a experiência com drogas nos anos 70, sua paranoia, a desavença com Stanislaw Lem e mesmo sua experiência religiosa dos anos 70. Matérias sobre o autor são fáceis de se encontrar a ponto de se montar um perfil. Antes de ler a biografia de Carrère eu esperava saber mais sobre esses fatos mas jamais imaginava a intensidade e o impacto desses acontecimentos na vida e obra de PKD. Com Eu estou vivo e vocês estão mortos descobri que a juventude de PKD foi influenciada por outro autor problemático: H.P. Lovecraft. Descobri também que assim como Lovecraft, PKD também tinha uma relação problemática com a mãe e que a presença da memória de sua falecida irmã Jane era uma constante em sua infância e uma ausência que o acompanhou por toda sua vida. De sua paixão por Lovecraft na juventude surgiu o título de um dos romances tratados na biografia de Carrère: o adjetivo eldritch dos textos de Lovecraft acabou por dar nome ao personagem Palmer Eldritch, este apenas um exemplo da influência do autor no desenvolvimento de PKD. Indico aqui a biografia A vida de H.P. Lovecraft de S.T. Joshi publicado no Brasil pela Editora Hedra para os leitores mais curiosos sobre a vida desse outro grande autor.

O primeiro reconhecimento do talento de Philip K. Dick.
Lendo o romance de Carrère fiquei sabendo que O Homem do Castelo Alto não é apenas uma ficção na cabeça de PKD: pra ele o livro é real, Hawthorne Abendsen e seu livro O Gafanhoto torna-se pesado é uma descrição da nossa realidade feita no mundo real onde o eixo venceu a guerra, nosso mundo é ficção. O encontro entre o autor e Juliana no final era um encontro que ele esperava ter um dia com alguma leitora ideal cuja leitura de O Homem do Castelo Alto resultasse na mesma epifania que a personagem de seu livro. Isso tudo poderia ser resultado de um segundo casamento infeliz na cabeça de uma pessoa comum mas na cabeça de PKD, nada era comum. Isto é ainda mais destacado quando Carrère aborda o romance Clãs da Lua Alfa onde PKD coloca toda sua experiência com esquizofrenia na caracterização da trama e dos personagens, discutindo o casamento infeliz nas páginas de seu romance. A situação se agrava ainda mais com uma visão que o atrairia pra religião e acabaria entrando nas páginas de Os Três Estigmas de Palmer Eldritch. A visão de um rosto no céu, vigiando tudo que PKD fazia poderia ser sintoma de uma esquizofrenia aguda mas na mente de Philip acabou virando mais um romance onde ele discute a existência de um ser onipresente em um mundo acessado apenas por uma droga especial, a chem-z, distribuída por aquele que dá nome ao livro. O que eu não sabia era que PKD criou todo o pano de fundo da trama a partir de sua relação com a igreja e seu entendimento dos rituais sacros.

Clãs da Lua Alfa é um reflexo da paranoia no autor.
De Palmer Eldritch, Carrère conduz o leitor ao Teste de Turing e como esse conceito afetou PKD a ponto dele criar Androides sonham com Ovelhas Elétricas e misturar isso com a empatia de São Paulo, o caminho do mártir de Mercer e a comunhão final do protagonista do livro com ele. Ubik surge como a comunhão definitiva com o espirito santo, algo que o leitor do romance pode até vislumbrar como metáfora mas que o próprio PKD acabaria vendo mais tarde como uma verdade sagrada. Fluam minhas lágrimas, disse o policial e Um reflexo na escuridão vieram depois quando a fase religiosa e a paranoia cederam espaço às drogas e uma vida de junkie. Uma internação rendeu o laboratório necessário pra criar a trama básica de Reflexo enquanto Fluam minhas lágrimas foi construído ao longo de toda essa fase, principalmente em cima das paranoias do autor com Nixon. A esquizofrenia e paranoia acabam por resultar no final da obra de PKD com sua visão divina em 74, quando ele se deu conta que ele dividia o corpo com Thomas, um cristão do ano 70DC, isso tudo depois da intervenção de uma entidade a quem ele nomeia Valis (Vast Active Living Intelligence System / Vasto Sistema Ativo de Inteligência Vivo em tradução livre). Valis nomeia o primeiro de 3 livros que constituiriam parte de sua exegese (seu texto sagrado, um novo testamento) e, a partir daí, tudo que ele havia escrito, todos os seus romances, nada mais eram que extensões dessa iluminação, ele só havia se dado conta a partir dessa experiência. Do Homem do Castelo Alto a Ubik! Antes de morrer, PKD ainda escreveria A Invasão Divina e A transmigração de Timothy Archer, sem necessariamente concluir sua visão divina mas, ainda assim, deixando sua marca na literatura mundial.

Reconhecimento tardio: Blade Runner.
Um dos romances mais fracos de PKD,
escrito após a experiência divina em 74.
E isso é só uma pincelada superficial do que a biografia de Carrère traz. Nela você ficará sabendo o quanto o I Ching influenciou não apenas a concepção do Homem do Castelo Alto como também a vida de PKD dali em diante. Descobrirá de onde PKD tirou os elementos essenciais de cada obra, ora de suas paranoias, ora de sua experiência religiosa, ora de sua experiência com drogas, ora de sua experiência divina, ora de tudo isso junto! Philip K. Dick foi considerado por Stanislaw Lem o grande autor de ficção científica norte-americana em meio à mediocridade dos de seus pares. E mesmo esse reconhecimento foi visto pela paranoia de PKD como uma ameaça comunista, uma artimanha do inimigo invisível que ele via em cada esquina já que o FBI e a CIA o vigiavam de perto, em sua cabeça. Fica aqui a observação: Lem é o autor de alguns dos melhores romances de ficção científica já escritos, vide grandes clássicos como Solaris ou Cyberiada. Esses momentos da vida de PKD, romantizados aqui por Carrère, conduzem o leitor a um entendimento profundo da mente deste. A biografia de Carrère despertou em mim a vontade de reler toda a obra do autor de tal maneira que o fiz com os livros descritos pelo autor em sua biografia a cada capítulo lido. Essa foi uma das resenhas/leituras mais demoradas do Sentinela em virtude dessas releituras mas garanto que a experiência é gratificante. Se você é fã de Philip K. Dick e gostaria de conhecer melhor a obra do autor ou se você deseja conhecer PKD e quer saber sobre a concepção de suas principais obras, Eu estou vivo e vocês estão mortos é leitura obrigatória. Inédito no Brasil, o livro foi traduzido e editado com o mesmo capricho habitual da Editora Aleph, isso sem esquecer a capa, simplesmente surreal. Os romances Clãs da Lua Alfa e A Invasão Divina foram publicados no Brasil pela Francisco Alves e Melhoramentos, respectivamente. Você pode encontrá-los com alguma facilidade na Estante Virtual. Infelizmente não posso opinar nada sobre A transmigração de Timothy Archer mas fico na torcida pra que a Editora Aleph traga esse título aos fãs brasileiros de PKD, bem como os outros 2 mencionados que hoje só podem ser encontrados em sebos.


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O Sentinela Positrônica é um Blog Parceiro da Editora Aleph.
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Daniel Rockenbach, um estranho numa terra estranha que decidiu compartilhar suas leituras sobre ficção científica em suas mais diversas manifestações.

Seu instagram é @danielrockenbach.