7 de junho de 2016

A Procura de Boas Ideias

Na literatura e nas artes, de um modo geral, de tempos em tempos, boas ideias aparecem. Elas podem surgir baseadas em referências literárias/artísticas e surpreender o leitor/espectador que esperava algo definido dentro dessas referências ou mesmo inovar, trazendo algo diferente em cima dessas mesmas referências, subvertendo padrões e ainda assim, mantendo as influências. Raros são os momentos em que algo novo e autêntico surge e reinventa toda uma série de conceitos literários/artísticos. Foi assim com a ficção científica quando abandonou de vez o fantástico ao deixar no passado o mito do Frankenstein e abraçou Asimov e suas leis da robótica. Foi assim quando Philip K. Dick começou a divagar a existência e a própria racionalidade humana em seus textos, o que fez Ursula K. Le Guin reconhecer ele como o Borges da ficção científica.

Amorquia de André Carneiro, merece ser reeditado!
Como Pierre Boulle bem colocou em uma passagem do seu Planeta dos Macacos quando o protagonista questiona a evolução símia e a humana, raros são os momentos em que ideias novas aparecem, na maior parte do tempo é tudo uma grande releitura, as artes sendo o melhor exemplo. A cada grande ideia temos toda uma geração criando e desenvolvendo em cima dessa mesma ideia, a maioria apenas imitando o original, poucos desenvolvendo algo relevante e menos ainda entregando novas possibilidades em cima dessa mesma ideia.

Roberto de Sousa Causo, um dos
poucos autores nacionais de ficção
científica em atividade.
Com isso em mente, sou um dos muitos admiradores da ficção científica que lamenta a escassa produção nacional do gênero atualmente. Salvo alguns títulos publicados pela Devir e a Draco, é muito difícil encontrar material nacional que não seja publicado de forma independente ou em periódicos digitais como o Somnium do Clube de Leitores de Ficção Científica, disponibilizado gratuitamente em formato digital, e, mesmo assim, a maioria está mais próxima do fantástico ou das Space Operas e Cyberpunks (e variações) que pra ficção científica dita "hard", classificação que eu já disse discordar no primeiro post do blog.

Estamos carentes de mais produção e de autores como André Carneiro e Jorge Luis Calife que deixaram sua marca na ficção científica mundial e essa escassez é algo que vejo com certa tristeza. Temos bons autores, claro, o Roberto de Sousa Causo é um excelente exemplo de autor nacional de ficção em atividade mas precisamos mais. Nada contra Space Operas e o Cyberpunk mas o excesso nunca faz bem, ainda mais quando nossa ficção tende a se prender ao fantástico, o que oferece o perigo de regredir aos tempos em que ficção científica se limitava a ser um mero escapismo, tal como um Flash Gordon, Buck Rogers, John Carter e outros tantos heróis genéricos. Isso não é ruim, entretém na maioria das vezes mas limita se restrito a isso.

A Procura de Vida Inteligente, de Victor Allenspach
Pois qual foi minha surpresa ao conhecer o livro A Procura de Vida Inteligente de Victor Allenspach. O autor entrou em contato comigo pelo facebook me oferecendo o livro pra resenhar no Blog. Ao ler sobre o livro em outros lugares, tive a impressão superficial de que se tratava de uma grande referência ao trabalho de Douglas Adams, algo que até referi ao postar sobre as futuras leituras do Sentinela nas redes sociais. Meu receio confesso era de ter um livro regular em mãos e ter uma leitura quando muito correta de mais um autor referenciando os próprios gostos dentro da ficção científica. Isso não é demérito, pelo contrário, mas coincide com a observação que fiz sobre Planeta dos Macacos, uma ideia repetida não se destaca, se torna apenas mais uma referência.


Logo que recebi o livro, percebi o empenho de Victor que, além de ter cuidado do projeto gráfico do livro, bancou a edição e impressão do livro, o que já rende grandes elogios dado o esforço dele próprio em levar sua obra aos leitores, algo louvável nos tempos em que tudo é digital e ainda mais especial se considerarmos que o papel utilizado na impressão do livro era reciclado. Minha impressão era que, se não fosse surpreendido pela escrita, com certeza a apresentação, o carinho e o cuidado do Victor já mereciam elogios. Ele foi autor, editor, revisor, designer gráfico, social media, assessor de imprensa e até agente literário, tudo isso pra produzir seu primeiro livro: A Procura de Vida Inteligente.

Projeto gráfico do próprio autor!
A Procura de Vida Inteligente conta a história do personagem de nome Boris em capítulos que podem ser entendidos como contos onde a robótica e a exploração espacial elaboram o pano de fundo geral da trama. Cada conto entrega uma passagem da existência de Boris e dos personagens que o cercam, alguns sendo mencionados entre um capítulo e outro. Sua relação com o mundo, as máquinas e os humanos é o que desenvolve cada conto/capítulo, com exceção ao capítulo Mula desobediente onde o desafortunado Ekta acaba apenas ouvindo falar de Boris sem saber de quem se trata. Destacar mais sobre os contos é arriscado pois qualquer spoiler aqui pode prejudicar a surpresa que a trama entrega em seu desfecho. Posso dizer que a (des)construção do protagonista Boris é o ponto forte da narrativa e vai manter o leitor interessado até o desfecho, ainda que as dúvidas se acumulem ao longo da leitura. Tenha paciência, o final vale o esforço!

Foi com muita alegria que, ao terminar a leitura, percebi estar diante de um autor com grande potencial. A Procura de Vida Inteligente tem várias referências aos clássicos e pode ser enquadrado tranquilamente como ficção científica "hard", por assim dizer, mas sem jamais se limitar a repetir mecanicamente os clássicos. Victor referencia em seu livro Douglas Adams e seu humor, Asimov e sua robótica e ainda traz muito dos questionamentos de Philip K. Dick em sua essência. Não pude deixar de notar a semelhança entre a curiosidade de Boris e a do protagonista do conto A Formiga Elétrica de PKD. No que se refere ao humor eu diria até estar próximo do Robert A. Heinlein com seu humor seco que até do irônico Douglas Adams. Algumas das ironias que vi nos capítulos trazem muito desse humor mais próximo da realidade, mais concreto e menos "viajado" que o humor de Douglas Adams. Claro que isso é apenas uma impressão, posso dizer tranquilamente que o Victor encontrou um meio termo bastante interessante entre os dois pra situar seu estilo. Em alguns momentos, quando banca o narrador onipresente, Victor lembra Adams mas, quando se expressa por meio de seus personagens, ele está muito mais próximo de Heinlein em obras como A Estrela Oculta.

Dedicatória do autor antes da fama!
A trama não-linear acaba destacando ainda mais a criatividade da construção da narrativa de A Procura de Vida Inteligente. Os fãs mais experientes de autores como Arthur C. Clarke e Isaac Asimov bem sabem que a narrativa de ambos é objetiva, técnica e sem floreios ou sofisticações. Eles nunca fizeram cerimônia em admitir que compensam a falta de técnica com suas ideias em tramas sempre reflexivas e densas, algo que sempre entregou a origem pulp destes dois grandes monstros da ficção científica. Sua ficção sempre tratou da reação humana a tecnologia e ao futuro e nas mais variadas situações que o futuro pode entregar a nossa espécie. Em seu livro, Victor também não se entrega a floreios literários mas constrói uma narrativa sólida, não-linear, que toma o leitor aos poucos e surpreende pela reflexão final, algo que poucos fazem na ficção em geral. Muitos tentam mas poucos entregam algo que realmente surpreende ao mesmo tempo que é construído de maneira coesa. Pra ser sincero, confesso que reli várias passagens a procura dos infames erros ou inconsistências na trama e ainda assim, falhei miseravelmente em encontrar. Cientificamente falando, Victor não tomou nenhuma liberdade criativa que violasse quaisquer regras da natureza e da ciência, ao menos nenhuma que qualquer outro autor já não tenha quebrado. Claro que não sou um editor/revisor e acredito que com alguma revisão e edição especializada, A Procura de Vida Inteligente pode almejar vôos ainda mais ambiciosos. Basta cair no gosto do público e de uma editora capaz de trabalhar o material pra tirar o melhor (cof, Aleph, cof, cof...). Como esse é o primeiro livro publicado do autor, fica também a expectativa de que o segundo seja no mínimo tão bom quanto este, outra barreira que aguardo ansioso pra ver Victor quebrar.

Recomendo a todos a leitura de A Procura de Vida Inteligente de Victor Allenspach, sejam leitores de longa data da ficção científica e de outros gêneros. Temos aqui um autor capaz, dedicado e honesto cuja referência aos clássicos nunca se limita à mera repetição e que entrega uma obra excepcionalmente criativa dentro de um contexto em que muito já foi dito mas que, como muitos gostam de pensar, ainda tem muito a se dizer.


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Daniel Rockenbach, um estranho numa terra estranha que decidiu compartilhar suas leituras sobre ficção científica em suas mais diversas manifestações.

Seu instagram é @danielrockenbach.