*Aviso: o texto a seguir contém spoilers inevitáveis sobre a trama tanto do episódio original como da HQ.
Cidade à beira da eternidade é um dos episódios mais emblemáticos da série clássica de
Jornada nas Estrelas. O episódio foi ao ar pela primeira vez em 6 de abril de 1967, durante a 1ª temporada da série. O roteiro foi escrito antes mesmo do seriado entrar em plena produção, logo após a aprovação do 2º episódio piloto da série,
Onde nenhum homem jamais esteve. O roteiro foi escrito por ninguém menos que
Harlan Ellison, um grande nome da ficção científica em várias mídias. O homem trabalhou em romances, contos, HQs, roteiros de TV e cinema e até colaborou no jogo de computador que adaptou um de seus melhores contos,
Não tenho boca e preciso gritar.
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O episódio original exibido em 1967 |
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Harlan Ellison
homenageado
como um dos
personagens
da HQ |
O roteiro original destacava personagens como a ordenança
Rand e o tenente
Beckwith, a ordenança acabou dando lugar a
Uhura no episódio e o tenente, que era o motivador da trama, acabou substituído pelo
Dr. McCoy. Essas alterações se devem mais ao fato de que quando o roteiro foi escrito, os personagens principais ainda não estavam bem definidos e isso só foi se resolver na pré-produção do episódio. Outro problema foi o custo de produção dos cenários, a ideia original do
Guardião da Eternidade era muito mais sofisticada, envolvia uma cidade futurística abandonada e não apenas um mas vários guardiões de um portal do tempo bem mais épico que o que foi visto no episódio, tudo isso teve que ser revisto e readaptado à realidade de produção do seriado, algo que acabou acontecendo com vários episódios.
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Beckwith, acima ,se diverte enquanto percebe que sua
vítima entrou em mais um "barato nas estrelas"... |
Ao menos esse seria o lado bom dos "problemas", não fosse o desentendimento entre
Harlan e
Gene Roddenberry, o criador da série, com a polêmica sobre o uso de drogas no episódio. No original, o tenente
Beckwith era o traficante de uma droga sintética a bordo da Enterprise e usava isso pra chantagear os viciados pra conseguir o que queria dentro da nave. Quando seu esquema é revelado por um dos viciados ele foge e desce pro planeta e com isso acaba sendo ele a cruzar o portal do tempo e não o
Dr. McCoy, entorpecido pelo uso acidental da droga sintética destinada ao tratamento do
Sr. Sulu como visto no episódio que foi ao ar. A temática das drogas, ainda que breve, era importante na visão de
Ellison uma vez que o tenente
Beckwith tenta voltar no tempo em benefício próprio mas do ponto de vista de
Roddenberry seria um problema com o estúdio e com a ideologia da série. Não que
Jornada nas Estrelas tivesse qualquer cunho moralista mas o mote do seriado é um futuro em que a humanidade busca explorar o espaço à procura de conhecimento e não tinha tempo ou interesse pra ter um "barato nas estrelas". Ainda que essa diferença de roteiro esteja presente apenas na primeira edição, ela define o caráter (ou a falta de) do tenente
Beckwith.
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A HQ contou com capas de J. K. Woodwarde do sensacional
Juan Ortiz que fez posters vintage pra todos
os episódios da série clássica recentemente |
De uma forma ou de outra o roteiro original de
Ellison teve de ser revisto e as alterações fizeram com que ele nunca mais quisesse ter qualquer envolvimento com
Roddenberry ou
Jornada nas Estrelas. Isso até ano passado quando a editora
IDW resolveu convocar os roteiristas
David e
Scott Tipton junto com o desenhista
J. K. Woodward pra adaptar o roteiro original do episódio, com a supervisão do próprio
Harlan Ellison, em uma série de HQs em 5 edições. O resultado foi sensacional tanto pela recepção da crítica como dos fãs da série que puderam finalmente visualizar o roteiro como ele foi pensado originalmente.
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A Cidade à beira da Eternidade do título aqui
é muito mais épica que no episódio original |
A trama segue relativamente parecida com a do episódio que foi originalmente ao ar: a
Enterprise detecta um distúrbio temporal na região do espaço onde fica o planeta do guardião e
Kirk decide investigar a causa do fenômeno, o grupo de descida toma conhecimento em solo da situação do alterado tenente
Beckwith que acaba ocasionalmente atravessando o portal do tempo. Nessa parte ainda há outra diferença que foi cortada do episódio onde
Kirk,
Spock e o grupo avançado decidem voltar pra
Enterprise apenas pra descobrir ela comandada por um grupo de renegados que em nada tem a ver com a tripulação original. A nave agora é chamada de
Condor e sua tripulação lembra mais os homens de
Khan em
Ceti Alfa V de
Jornada nas Estrelas II que qualquer outra tripulação da
Federação. É assim que eles percebem que o universo que conheciam foi alterado resultando na descida de
Kirk e
Spock ao planeta pra acessarem o portal do tempo pra tentar consertar tudo que foi alterado pelo tenente
Beckwith em sua incursão ao passado.
Acredito que essa é a parte que mais me incomodou na HQ visto que no episódio que foi ao ar fazia sentido o grupo de descida descobrir que depois que o
Dr. McCoy passou pelo portal, nunca mais houve uma
Enterprise em órbita do planeta enquanto no roteiro original, a
Condor é uma nave idêntica à de
Kirk, porém, comandada por um grupo de renegados que nada tinham a ver com a
Federação. Ao meu ver, se todo o universo conhecido da
Federação mudou com a incursão de
Beckwith ao passado, seria incoerente uma
Enterprise exatamente idêntica a do universo conhecido por
Kirk e sua tripulação. Claro que mesmo esse detalhe não tira o brilho da participação da ordenança
Rand que na HQ toma a dianteira da situação comandando a resistência ao grupo de renegados a bordo da
Enterprise enquanto
Kirk e
Spock tentam reverter tudo que aconteceu.
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Os Guardiões da Eternidade |
A passagem de
Kirk e
Spock pelo portal é muito mais lírica que o simples pulo exibido no episódio original, na HQ eles tem um longo diálogo com os guardiões que preparam a dupla pro que está por vir. O salto envolve uma viagem muito mais sofisticada que no final acabou sendo editada pra se adaptar aos custos de produção. Outra breve diferença entre a HQ e o episódio original é que na HQ a recepção a
Spock no passado é mais complicada uma vez que ele é visto como um chinês e com isso associado aos tantos imigrantes que na visão dos mais radicais levaram os EUA ao período da grande depressão.
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Um salto para o passado, aqui muito mais poético e esteticamente impactante |
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Spock decifra o enigma |
Na HQ, os guardiões dão uma dica misteriosa, tipo as charadas vistas em obras como
Senhor dos Anéis, sobre o ponto focal no tempo que alterou toda a realidade conhecida.
Spock percebe a dica ao notar que uma mulher que discursa sobre um futuro otimista,
Edith Keeler, usa uma joia que cabe na descrição enigmática dada pelos guardiões, o resto segue um roteiro parecido com o do episódio. Enquanto
Kirk vai notando que ela é uma visionária a frente de seu tempo,
Spock tenta restaurar o
tricorder pra tentar encontrar o ponto focal em que
Beckwith alterou a realidade no futuro, algo que envolve necessariamente
Edith Keeler. Essencialmente a trama segue a mesma até o momento em que eles descobrem a fatídica realidade: pra que tudo volte a ser como era,
Edith Keeler tem que morrer.
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Uma homenagem aos roteiristas, os Tipton Bros! |
A vida no passado tem mais elementos na HQ que no episódio, Kirk e Spock trabalham em lugares diferentes pra conseguir recursos pra restaurar as capacidades do tricorder. É mostrado muito mais do passado dos EUA na grande depressão em comparação ao que foi visto no episódio. O romance entre
Edith e
Kirk segue o mesmo caminho do episódio original enquanto ele e
Spock tentam encontrar o tenente
Beckwith e descobrir como ele altera o futuro interagindo com
Edith Keeler. Nessa parte da investigação destaco uma homenagem do desenhista da HQ,
J. K. Woodward, ao autor
Harlan Ellison: o indigente que ajuda
Kirk e
Spock tem as feições do autor, algo que os fãs de
Ellison com certeza vão notar emocionados, como eu. Pena que o destino do indigente que ajuda nossos heróis seja o mesmo do indigente que os ajudou no episódio filmado...
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A dura realidade sobre o destino de Edith Keeler |
A HQ encerra com
Kirk e
Spock salvando o dia mas não sem um apaixonado
Kirk ter que sofrer ao ver
Edith Keeler morrer no acidente em que ele teve que ficar parado enquanto
Spock impedia
Beckwith de agir e salvar
Edith, assim como
Kirk faz com
McCoy no episódio original. A maior diferença entre episódio e HQ no que se refere ao romance é que no texto original, o imbatível
Capitão Kirk sai muito mais abalado pela dor da perda de
Edith que no episódio que foi ao ar. Na HQ Kirk assiste impassível a tragédia se passando diante dos seus olhos, sem nada poder fazer, num cenário sem vitória como os tantos que ele conseguia tripudiar pra poder vencer, algo que no episódio original acaba encoberto pela atitude do próprio
Kirk em deter
McCoy. Talvez essa seja a famigerada alteração de roteiro que causou a ira de
Ellison com
Roddenberry. Se foi ou não, é algo que o próprio
Ellison nunca quis revelar.
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A desolação de Kirk |
Não há veredito que possa ser dado sobre qual seria uma eventual melhor versão da trama. Ambas tem seu encanto e, por mais que o episódio original não possa desfrutar de todo o esplendor da arte da HQ, seus efeitos práticos não comprometem a apresentação do
Guardião da Eternidade como uma entidade maior que a vida, acima do bem e do mal. O que me encanta na HQ, além da arte primorosa, é a intensidade do romance entre
Kirk e
Edith bem como a reação de
Spock à conclusão lógica e inevitável da trama: para que o universo que eles conheciam seguisse seu curso,
Edith Keeler devia morrer, um dos momentos mais trágicos e emocionantes em
Jornada nas Estrelas. Destaco o impacto emocional da tragédia na vida do
Capitão Kirk, aqui retratado de uma forma mais humana e menos disciplinada que o estoico capitão apresentado no seriado. Recomendo ambos, episódio e HQ, são clássicos que merecem ser devidamente apreciados.
P.S.: Se estivesse vivo hoje, 26 de março, Leonard Nimoy completaria 84 anos. Ele vive eternamente em nossa memória. Confira nossa homenagem ao ator no blog!
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Daniel Rockenbach, um estranho numa terra estranha que decidiu compartilhar suas leituras sobre ficção científica em suas mais diversas manifestações.