26 de março de 2015

Roteiro à beira da eternidade

*Aviso: o texto a seguir contém spoilers inevitáveis sobre a trama tanto do episódio original como da HQ.

Cidade à beira da eternidade é um dos episódios mais emblemáticos da série clássica de Jornada nas Estrelas. O episódio foi ao ar pela primeira vez em 6 de abril de 1967, durante a 1ª temporada da série. O roteiro foi escrito antes mesmo do seriado entrar em plena produção, logo após a aprovação do 2º episódio piloto da série, Onde nenhum homem jamais esteve. O roteiro foi escrito por ninguém menos que Harlan Ellison, um grande nome da ficção científica em várias mídias. O homem trabalhou em romances, contos, HQs, roteiros de TV e cinema e até colaborou no jogo de computador que adaptou um de seus melhores contos, Não tenho boca e preciso gritar.

O episódio original exibido em 1967

Harlan Ellison
homenageado
como um dos
personagens
da HQ
O roteiro original destacava personagens como a ordenança Rand e o tenente Beckwith, a ordenança acabou dando lugar a Uhura no episódio e o tenente, que era o motivador da trama, acabou substituído pelo Dr. McCoy. Essas alterações se devem mais ao fato de que quando o roteiro foi escrito, os personagens principais ainda não estavam bem definidos e isso só foi se resolver na pré-produção do episódio. Outro problema foi o custo de produção dos cenários, a ideia original do Guardião da Eternidade era muito mais sofisticada, envolvia uma cidade futurística abandonada e não apenas um mas vários guardiões de um portal do tempo bem mais épico que o que foi visto no episódio, tudo isso teve que ser revisto e readaptado à realidade de produção do seriado, algo que acabou acontecendo com vários episódios.



Beckwith, acima ,se diverte enquanto percebe que sua
vítima entrou em mais um "barato nas estrelas"...
Ao menos esse seria o lado bom dos "problemas", não fosse o desentendimento entre Harlan e Gene Roddenberry, o criador da série, com a polêmica sobre o uso de drogas no episódio. No original, o tenente Beckwith era o traficante de uma droga sintética a bordo da Enterprise e usava isso pra chantagear os viciados pra conseguir o que queria dentro da nave. Quando seu esquema é revelado por um dos viciados ele foge e desce pro planeta e com isso acaba sendo ele a cruzar o portal do tempo e não o Dr. McCoy, entorpecido pelo uso acidental da droga sintética destinada ao tratamento do Sr. Sulu como visto no episódio que foi ao ar. A temática das drogas, ainda que breve, era importante na visão de Ellison uma vez que o tenente Beckwith tenta voltar no tempo em benefício próprio mas do ponto de vista de Roddenberry seria um problema com o estúdio e com a ideologia da série. Não que Jornada nas Estrelas tivesse qualquer cunho moralista mas o mote do seriado é um futuro em que a humanidade busca explorar o espaço à procura de conhecimento e não tinha tempo ou interesse pra ter um "barato nas estrelas". Ainda que essa diferença de roteiro esteja presente apenas na primeira edição, ela define o caráter (ou a falta de) do tenente Beckwith.


A HQ contou com capas de J. K. Woodwarde do sensacional
Juan Ortiz que fez posters vintage pra todos
os episódios da série clássica recentemente
De uma forma ou de outra o roteiro original de Ellison teve de ser revisto e as alterações fizeram com que ele nunca mais quisesse ter qualquer envolvimento com Roddenberry ou Jornada nas Estrelas. Isso até ano passado quando a editora IDW resolveu convocar os roteiristas David e Scott Tipton junto com o desenhista J. K. Woodward pra adaptar o roteiro original do episódio, com a supervisão do próprio Harlan Ellison, em uma série de HQs em 5 edições. O resultado foi sensacional tanto pela recepção da crítica como dos fãs da série que puderam finalmente visualizar o roteiro como ele foi pensado originalmente.


A Cidade à beira da Eternidade do título aqui
é muito mais épica que no episódio original







A trama segue relativamente parecida com a do episódio que foi originalmente ao ar: a Enterprise detecta um distúrbio temporal na região do espaço onde fica o planeta do guardião e Kirk decide investigar a causa do fenômeno, o grupo de descida toma conhecimento em solo da situação do alterado tenente Beckwith que acaba ocasionalmente atravessando o portal do tempo. Nessa parte ainda há outra diferença que foi cortada do episódio onde Kirk, Spock e o grupo avançado decidem voltar pra Enterprise apenas pra descobrir ela comandada por um grupo de renegados que em nada tem a ver com a tripulação original. A nave agora é chamada de Condor e sua tripulação lembra mais os homens de Khan em Ceti Alfa V de Jornada nas Estrelas II que qualquer outra tripulação da Federação. É assim que eles percebem que o universo que conheciam foi alterado resultando na descida de Kirk e Spock ao planeta pra acessarem o portal do tempo pra tentar consertar tudo que foi alterado pelo tenente Beckwith em sua incursão ao passado.


Acredito que essa é a parte que mais me incomodou na HQ visto que no episódio que foi ao ar fazia sentido o grupo de descida descobrir que depois que o Dr. McCoy passou pelo portal, nunca mais houve uma Enterprise em órbita do planeta enquanto no roteiro original, a Condor é uma nave idêntica à de Kirk, porém, comandada por um grupo de renegados que nada tinham a ver com a Federação. Ao meu ver, se todo o universo conhecido da Federação mudou com a incursão de Beckwith ao passado, seria incoerente uma Enterprise exatamente idêntica a do universo conhecido por Kirk e sua tripulação. Claro que mesmo esse detalhe não tira o brilho da participação da ordenança Rand que na HQ toma a dianteira da situação comandando a resistência ao grupo de renegados a bordo da Enterprise enquanto Kirk e Spock tentam reverter tudo que aconteceu.

Os Guardiões da Eternidade

A passagem de Kirk e Spock pelo portal é muito mais lírica que o simples pulo exibido no episódio original, na HQ eles tem um longo diálogo com os guardiões que preparam a dupla pro que está por vir. O salto envolve uma viagem muito mais sofisticada que no final acabou sendo editada pra se adaptar aos custos de produção. Outra breve diferença entre a HQ e o episódio original é que na HQ a recepção a Spock no passado é mais complicada uma vez que ele é visto como um chinês e com isso associado aos tantos imigrantes que na visão dos mais radicais levaram os EUA ao período da grande depressão.

Um salto para o passado, aqui muito mais poético e esteticamente impactante

Spock decifra o enigma
Na HQ, os guardiões dão uma dica misteriosa, tipo as charadas vistas em obras como Senhor dos Anéis, sobre o ponto focal no tempo que alterou toda a realidade conhecida. Spock percebe a dica ao notar que uma mulher que discursa sobre um futuro otimista, Edith Keeler, usa uma joia que cabe na descrição enigmática dada pelos guardiões, o resto segue um roteiro parecido com o do episódio. Enquanto Kirk vai notando que ela é uma visionária a frente de seu tempo, Spock tenta restaurar o tricorder pra tentar encontrar o ponto focal em que Beckwith alterou a realidade no futuro, algo que envolve necessariamente Edith Keeler. Essencialmente a trama segue a mesma até o momento em que eles descobrem a fatídica realidade: pra que tudo volte a ser como era, Edith Keeler tem que morrer.


Uma homenagem aos roteiristas, os Tipton Bros!
A vida no passado tem mais elementos na HQ que no episódio, Kirk e Spock trabalham em lugares diferentes pra conseguir recursos pra restaurar as capacidades do tricorder. É mostrado muito mais do passado dos EUA na grande depressão em comparação ao que foi visto no episódio. O romance entre Edith e Kirk segue o mesmo caminho do episódio original enquanto ele e Spock tentam encontrar o tenente Beckwith e descobrir como ele altera o futuro interagindo com Edith Keeler. Nessa parte da investigação destaco uma homenagem do desenhista da HQ, J. K. Woodward, ao autor Harlan Ellison: o indigente que ajuda Kirk e Spock tem as feições do autor, algo que os fãs de Ellison com certeza vão notar emocionados, como eu. Pena que o destino do indigente que ajuda nossos heróis seja o mesmo do indigente que os ajudou no episódio filmado...




A dura realidade sobre o destino de Edith Keeler
A HQ encerra com Kirk e Spock salvando o dia mas não sem um apaixonado Kirk ter que sofrer ao ver Edith Keeler morrer no acidente em que ele teve que ficar parado enquanto Spock impedia Beckwith de agir e salvar Edith, assim como Kirk faz com McCoy no episódio original. A maior diferença entre episódio e HQ no que se refere ao romance é que no texto original, o imbatível Capitão Kirk sai muito mais abalado pela dor da perda de Edith que no episódio que foi ao ar. Na HQ Kirk assiste impassível a tragédia se passando diante dos seus olhos, sem nada poder fazer, num cenário sem vitória como os tantos que ele conseguia tripudiar pra poder vencer, algo que no episódio original acaba encoberto pela atitude do próprio Kirk em deter McCoy. Talvez essa seja a famigerada alteração de roteiro que causou a ira de Ellison com Roddenberry. Se foi ou não, é algo que o próprio Ellison nunca quis revelar.



A desolação de Kirk
Não há veredito que possa ser dado sobre qual seria uma eventual melhor versão da trama. Ambas tem seu encanto e, por mais que o episódio original não possa desfrutar de todo o esplendor da arte da HQ, seus efeitos práticos não comprometem a apresentação do Guardião da Eternidade como uma entidade maior que a vida, acima do bem e do mal. O que me encanta na HQ, além da arte primorosa, é a intensidade do romance entre Kirk e Edith bem como a reação de Spock à conclusão lógica e inevitável da trama: para que o universo que eles conheciam seguisse seu curso, Edith Keeler devia morrer, um dos momentos mais trágicos e emocionantes em Jornada nas Estrelas. Destaco o impacto emocional da tragédia na vida do Capitão Kirk, aqui retratado de uma forma mais humana e menos disciplinada que o estoico capitão apresentado no seriado. Recomendo ambos, episódio e HQ, são clássicos que merecem ser devidamente apreciados.



P.S.: Se estivesse vivo hoje, 26 de março, Leonard Nimoy completaria 84 anos. Ele vive eternamente em nossa memória. Confira nossa homenagem ao ator no blog!


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Você pode comprar a HQ digitalmente no Comixology aqui, a versão utilizada nessa resenha foi a seriada em 5 edições mas a edição única com todos os capítulos também está disponível.

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Daniel Rockenbach, um estranho numa terra estranha que decidiu compartilhar suas leituras sobre ficção científica em suas mais diversas manifestações.

Seu instagram é @danielrockenbach.

18 de março de 2015

Sonhos elétricos

Empatia

s.f. Aptidão para se identificar com o outro, sentindo o que ele sente, desejando o que ele deseja, aprendendo da maneira como ele aprende etc. 
Psicologia. Identificação de um sujeito com outro; quando alguém, através de suas próprias especulações ou sensações, se coloca no lugar de outra pessoa, tentando entendê-la. 
Competência emocional para depreender o significado de um objeto, geralmente, um quadro, uma pintura etc. 
(Etm. do grego: empátheia; pelo inglês: empathy)

O que define o ser humano? O conhecimento? Suas experiências? Sua capacidade de se relacionar? Essas questões fundamentais são abordadas pela Filosofia e Psicologia desde que o ser humano tenta entender a si próprio e mesmo assim, nenhuma delas tem respostas definitivas. Philip K. Dick toma tais perguntas para si em obras como Andróides sonham com ovelhas elétricas? ao confrontar o leitor com tais questionamentos.

Nova edição da Editora Aleph com extras como a carta de PKD aos produtores de Blade Runner, a última entrevista do autor antes da estréia do filme e um posfácio do tradutor Ronaldo Bressane

O romance se passa em 1992, numa San Francisco tomada por uma poeira radioativa, resultado de uma guerra mundial chamada Terminus. Quem não saiu do planeta e optou por ficar corre o risco de sofrer com deterioração física e mental e com isso virar um dos muitos "cabeças de galinha" que vivem à margem da sociedade por terem uma capacidade mental limitada. As colonias fora da Terra são a única opção para quem deseja uma nova vida, normal e saudável, a emigração é estimulada pelo governo e a mídia e quem ainda não emigrou tem que se submeter a avaliações periódicas para determinar se ainda é um humano normal ou se a poeira radioativa não o transformou em um "cabeça de galinha".

A visão do futuro no filme esteticamente combina com a do livro

Cada emigrante recebe um andróide ao se mudar para uma das colônias, um servo capaz de realizar todas as tarefas que o dono considerar necessárias, em outras palavras, praticamente um escravo. Os andróides são parte essencial do esforço de colonização e a cada geração que passa, são cada vez mais aprimorados e desenvolvidos pelas corporações para se parecerem com os humanos que os possuem. A presença de andróides é considerada ilegal fora das colônias e isso faz com que eles sejam caçados e "aposentados" por caçadores de recompensa ligados às agências de polícia quando decidem fugir para a Terra.

Nesse futuro os animais foram na sua maioria extintos pela poeira radioativa e com isso, ter um animal vivo traz status ao proprietário bem como uma espécie de benção divina pela tarefa de proteger e cuidar do animal. Uma religião surgida no pós-guerra chamada mercerismo define essa relação com a vida animal através da sina de seu profeta, Wilbur Mercer que, através de um dispositivo tecnológico de empatia divide com cada devoto seu calvário. A necessidade de se ter um animal, seja por status ou por apelo religioso, cria um mercado em torno do comércio de animais vivos com direito à cotação de preços e tudo mais que a lei da oferta e procura pode oferecer, inclusive um mercado paralelo de falsificações mecânicas, animais elétricos que simulam perfeitamente um animal vivo.

Quem vai querer ficar na Terra depois da guerra? Venha você também para as colônias fora da Terra! 

Andróides sonham com ovelhas elétricas acompanha um dia na vida de Rick Deckard, um caçador de recompensas da polícia de San Francisco. Deckard é casado e vive uma vida frustrante por saber que sua ovelha é na verdade um animal elétrico e com isso, nem ele ou a esposa acabam conseguindo uma experiência plena de fusão com Mercer. Ele já teve uma ovelha real, no entanto ele a perdeu quando ela teve tétano e desde então foi substituída por uma ovelha elétrica. O sonho de Deckard é ganhar uma recompensa generosa caçando andróides para poder finalmente comprar um animal vivo e poder voltar a se sentir pleno novamente. Acontece que, por ironia do destino, o caçador de recompensas titular do departamento, Dave Holden, é ferido por um andróide e o desejo de Deckard acaba ficando mais próximo assim que ele recebe a tarefa de caçar os outros 6 andróides que Holden deveria aposentar.

A jornada de Deckard é parelha ao cotidiano de J. R. Isidore, um "cabeça de galinha" solitário cuja rotina é trabalhar como motorista de uma clínica veterinária que na verdade é uma oficina de reparos para animais elétricos e no tempo livre tenta experimentar a fusão com Mercer no seu dispositivo de empatia. Seu destino aparentemente é se tornar parte da bagulhificação do mundo, termo dado pelos personagens para o acúmulo de dejetos da Terra devastada numa metáfora interessante ao conceito de entropia. Enquanto Deckard executa suas investigações, o leitor acompanha o drama de Isidore até que as trajetórias de ambos se encontrem. No começo de suas investigações, Deckard conhece a corporação Rosen que criou os novos modelos Nexus 6, os modelos dos andróides que ele foi incumbido de caçar. A ele é dada a tarefa de usar o teste Voight-Kampf em um grupo de indivíduos, um teste psicológico que determina se o sujeito é ou não um andróide através de medidas do tempo de reação nas respostas além da reação física ao estímulo dado por cada pergunta do teste. Se os novos modelos Nexus 6 passarem pelo teste, toda a operação pode ir por água abaixo visto que essa é a única forma de se distinguir humanos de andróides, em um teste de empatia. Aposentar um humano por engano é um dos maiores crimes que se pode cometer portanto o teste tem que ser preciso.

Ela é artificial?

A empatia é um dos temas centrais do livro. Seja na fusão com Mercer onde as pessoas sentem empatia pela dor de seu messias ou nas medições das reações dos submetidos ao teste Voight-Kampf, a empatia é o grande tema aqui. Um andróide não consegue sentir empatia por qualquer coisa, por mais que as corporações tentem o deixar mais parecido com um ser humano, seja com memórias implantadas ou uma capacidade cognitiva maior que a de um ser humano normal. A empatia permite a plena fusão com Mercer e um andróide é incapaz de viver esse tipo de experiência. O teste Voight-Kampf consiste em medir com sensores a reação do sujeito a uma série de perguntas que provocam a sensação de empatia em variadas situações. O interessante é que em um dado momento, o próprio Deckard é confrontado pela sua falta de empatia com sua caça e isso gera um questionamento interessante quando ele é confrontado por outro caçador, ainda mais frio e metódico que ele, chamado Phil Resch.

Sentir pena pela escassez de vida animal no planeta ou pela dor do martírio de Mercer através dos dispositivos de empatia é um comportamento natural a todos os humanos mas que, com o tempo, acaba se tornando algo difícil para um caçador de recompensas. Se eles sentem pena de suas vítimas, seu trabalho se torna ineficaz ou mesmo impossível de ser realizado. Isso faz com que em dado momento Deckard se questione inclusive sobre sua própria natureza humana em um dos pontos altos da trama. Além da presença de Resch também vale destacar o papel de Rachel Rosen, personagem com um papel ambíguo e que acaba afetando o julgamento de Deckard justo pela provocação dos sentimentos de empatia e repulsa em determinadas situações. Sua presença sempre desestabiliza o protagonista colocando ele em situações de conflito pessoal.

Como seria dirigir um hovercar ou um spinner do livro / filme?

Andróides é um clássico de Philip K. Dick que trata o questionamento da realidade humana através da sua relação com a vida ao seu redor, a empatia presente ao longo de toda a trama é algo que não podemos evitar, por pior que as coisas estejam. Andróides não conseguem dividir esse tipo de experiência pois não necessariamente estão vivos, eles podem emular muito bem um ser vivo, agir como um, ter memórias que o definem como um mas é a falta de capacidade de expressar o sentimento de empatia que os entrega. Deckard em sua caçada acaba enfrentando seu calvário pessoal, assim como Mercer, quando ele é confrontado com o papel que desempenha e sua total falta de empatia por aqueles que ele caça. Ao aposentar uma das andróides ele sente um vazio e percebe que sua tarefa não é algo que combina com as lições de Mercer e assim a trama segue até que ele tem uma visão do próprio Mercer que faz com que ele finalmente aceite seu papel, ainda que não entenda.

O mais interessante é que nem mesmo Mercer está ileso na trama de Andróides, o que gera um contraponto interessante ao final do livro. Após a grande revelação do programa do Buster Gente Fina (outro arco interessante na trama) ficam pendentes várias questões. Quem realmente foi Mercer? De onde surgiu o mercerismo, qual seu propósito? Essas perguntas o autor deixa em aberto para o leitor especular enquanto a pergunta do título, os sonhos de gente como Deckard ou os andróides, ganha sua resposta ao longo da trama.

Ridley Scott e Philip K. Dick na época da pré-produção da adaptação

P.S.: Decidi não discutir os paralelos entre livro e a adaptação para os cinemas Blade Runner para abordar o tema em outros posts, um sobre o filme, outro com os paralelos entre ambos.

P.S.2: Recomendo intensamente a leitura do posfácio da nova edição da Editora Aleph escrito pelo tradutor do livro, Ronaldo Bressane. O texto esclarece muito sobre os temas da obra bem como traz uma interessante análise da relação entre livro e filme.

P.S.3: Considero a carta de Philip K. Dick aos produtores do filme o Manifesto Cyberpunk. Assim como a carta de Truffaut à Hitchcock foi o Manifesto que originou a Nouvelle Vague, o texto de PKD destaca a necessidade de mudança da ficção científica tradicional, ainda enraizada em suas viagens fantásticas e alegorias visionárias, com a qual ele próprio já destoava, para algo novo, contemporâneo, algo que o filme parecia trazer em seu cerne e que anos mais tarde se provou a grande influência do movimento Cyberpunk.


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Daniel Rockenbach, um estranho numa terra estranha que decidiu compartilhar suas leituras sobre ficção científica em suas mais diversas manifestações.

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10 de março de 2015

O Vórtice Fantástico

O Vórtice Fantástico é um projeto cujo objetivo é criar grupos de leitura e discussão de obras fantásticas, sejam elas de ficção científica, fantasia ou terror, em todo o território nacional. Idealizado por Raquel Moritz e Bruna Miranda, o Vórtice tem grupos se reunindo regularmente em várias capitais do país, uma delas sendo a capital onde resido, Campo Grande, MS. A Raquel é responsável pelo blog Pipoca Musical e atualmente cuida do Vórtice em Blumenau, a Bruna tem um vlog com resenhas literárias e outras dicas e cuida do grupo em São Paulo, capital, essas foram as duas primeiras cidades onde o projeto começou e acabou se espalhando. É graças ao esforço delas que o Vórtice ganhou várias cidades Brasil afora e vem ganhando cada vez mais adeptos aos grupos de leitura já estabelecidos. Se você deseja se inscrever, basta enviar um email pra vorticefantastico@gmail.com informando sua cidade que o grupo encaminha o formulário pra participar do grupo na sua região, e caso não exista um, você será orientado a como criar um grupo. Não custa nada participar e a recompensa é sensacional, garanto!

Tem como não curtir no facebook?

O que mais me encanta na iniciativa é a possibilidade de discutir livros, filmes ou até mesmo séries com um grupo de pessoas com os mesmos gostos e interesses que o meu. Eu sempre quis ter um grupo assim mas infelizmente nunca encontrei pessoas dispostas a ir além do "um dia desses" ou mesmo que saíssem do tradicional "se tivesse tempo", isso quando não esbarrava no "eu já li isso, pra que discutir de novo". Acredito que quando temos algo que gostamos, compartilhar isso, ainda que no caso fazendo uma nova leitura, é uma das coisas mais recompensadoras que podemos fazer.

De mesquinho já bastam os Ferengis!
Indicar um clássico já lido pra quem nunca leu ou assistiu a um filme/seriado já visto é algo que recompensa pelo simples fato de que você pode conquistar ali mais um fã de algo que você também gosta e com isso, mais alguém interessado no assunto em comum. Tornar ficção científica ou qualquer que seja o tema em algo hermético, restrito apenas a um grupo de pessoas, é apenas limitar a própria paixão em função de algo mesquinho como ciúme ou mesmo sintoma de um ego inflado.

Dar essa chance de participar de algo maior pode inclusive ser uma forma de descobrir novos horizontes, novas leituras. Cedo ou tarde, por mais que você tenha lido ou visto muita coisa, algo novo aparece e aí você pode acabar se encantando com uma nova descoberta, uma nova leitura que você não conhecia, um novo autor, um filme recém lançado e assim por diante.

Esse é o mérito do Vórtice Fantástico, essa é a recompensa que tive desde que comecei a fazer parte do grupo no final de 2014. A primeira leitura que tivemos foi 2001: Uma Odisséia no Espaço de Arthur C. Clarke, clássico que figura entre meus favoritos e, não por acaso, foi indicação minha pra primeira leitura do grupo. Minha maior alegria foi perceber depois da primeira reunião após a leitura do livro que o grupo se encantou com a obra e ganhou um interesse que hoje percebo que é cada vez maior pela literatura de ficção científica. Pra muitos ali era o primeiro contato com o gênero e a reação foi extremamente positiva. Fomentar esse tipo de descoberta meus caros, não tem preço.

Vida Longa e Próspera
Na última reunião do grupo, dia 7 de março passado, nos reunimos na livraria Leparole pra fazer uma singela homenagem ao falecido Leonard Nimoy, o eterno Sr. Spock de Jornada nas Estrelas. Fiz a sugestão na reunião da semana anterior logo que a notícia do falecimento correu na mídia e sugeri ao grupo assistir alguns episódios da série clássica de Jornada nas Estrelas como forma de conhecer a série e o personagem e com isso homenagear esse grande mito da cultura pop.

Escolhi o clássico Cidade à beira da eternidade da primeira temporada da série e tomei a liberdade de transmitir o episódio no formato original, sem a recente remasterização com novos efeitos feita pela CBS, pra que o grupo conhecesse a série como ela foi transmitida em sua época. O episódio é especial por vários motivos, o principal deles ter sido escrito pelo genial Harlan Ellison, um dos grandes autores de ficção científica do século XX, e também por ser um episódio favorito de muitos fãs da série. Em Cidade à beira da eternidade Spock deve orientar seu capitão a tomar uma das decisões mais difíceis de sua vida. O motivo da escolha desse episódio é ele mostrar a racionalidade e frieza de Spock em todo seu esplendor, principalmente no momento em que ele demonstra a Kirk o motivo pelo qual a alteração no futuro deles foi feita, ainda que isso custe muito caro pro seu capitão.

Evite entrar em portais, sejam eles quais for

O outro episódio que acompanhamos no encontro foi Tempo de Loucura, este escrito por outro grande autor de ficção científica, Theodore Sturgeon. No episódio pela primeira vez os fãs conhecem o planeta natal de Spock, Vulcano, e podem ter uma ideia de sua estética, do ambiente e da cultura vulcanas. Escolhi esse episódio por ele expandir a mitologia do personagem Spock enquanto mostra a versatilidade de Leonard Nimoy em entregar ao público um Spock ainda mais profundo, com conflitos até então inesperados a todos os fãs da série.

Muita pesquisa e pouca diversão fazem de Spock um sujeito infeliz...
Muita pesquisa e pouca diversão...

Vocês não imaginam qual foi minha surpresa no final do encontro ao perceber que o grupo gostou de assistir os episódios ao ponto de querer conhecer mais Jornada nas Estrelas e pedir mais recomendações minhas sobre a série. Jornada nas Estrelas, por mais que o tempo passe, resiste e não apenas pelo apelo junto a sua base de fãs como eu, Jornada segue viva e bem porque traz boas histórias, personagens fortes e uma temática atemporal, basta a pessoa que não conhece dar uma chance pra ela acabar encantada com a proposta da série. Não por acaso ela está prestes a completar 50 anos e ainda ganhar reprises e relançamentos em DVD e BluRay, sem esquecer os novos filmes e uma possível nova série a caminho.

É essa satisfação que me levou a apostar no Vórtice Fantástico, a empolgar e reler os clássicos que li há 15, 20 anos atrás e falar de filmes e séries que assisto desde a infância. Meus pais fizeram isso um dia comigo, meus professores também. Sou grato a todos eles e espero estar repetindo isso com meus novos amigos do Vórtice. Sou grato à Raquel e à Bruna por tomarem a iniciativa que muito marmanjo que se diz entendido no assunto não tomou, não fossem elas e sua curiosidade e não teríamos uma nova geração de leitores de clássicos como Arthur C. Clarke, Isaac Asimov, Robert A. Heinlein, Philip K. Dick e outros tantos. Pra elas o meu mais sincero parabéns, seguido de um grande obrigado. Graças a elas conheci o Samuka, o Danilo, o Renan, o Bruno, a Carolina, a Daniella e todos os outros que minha memória já preguiçosa me fez esquecer ou quaisquer outros que ainda virei a conhecer. É graças a vocês que desenterrei meus arquivos das antigas, cacei minhas colaborações do tempo da internet discada, meus pitacos acadêmicos e comecei o projeto do Sentinela.

A galera reunida após a reunião
Fica aqui portanto, meu muito obrigado a todos os envolvidos! Vida longa e próspera ao Vórtice Fantástico!

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Daniel Rockenbach, um estranho numa terra estranha que decidiu compartilhar suas leituras sobre ficção científica em suas mais diversas manifestações.

Seu instagram é @danielrockenbach.

3 de março de 2015

Revisitando Eu, Robô

Antes de se começar a analisar Eu, Robô de Isaac Asimov há que se considerar Frankenstein, de Mary Shelley. Na obra, o "prometeu moderno" rouba o conhecimento que deveria pertencer apenas aos deuses e dá a vida a uma criatura que, por menos inteligente que pareça, tem plena ciência da própria existência. Isso cria o conflito da narrativa, a percepção do monstro de sua própria criação, levando ao desfecho onde o seu criador, Victor Frankenstein, é devidamente punido por seu atrevimento ao roubar a centelha dos deuses, o conhecimento, tal qual fez Prometeu na mitologia grega.

Frankenstein, interpretado pelo eterno Boris Karloff

Até o começo do século XX, as máquinas ou mesmo os robôs eram vistos da mesma forma, como abusos do homem perante a natureza e suas leis implacáveis. A ignorância é uma bênção diz o ditado e era assim que as ficções tratavam quaisquer engenhos criados pela mão do homem, como pecados que cedo ou tarde teriam a devida punição. Foi assim com Frankenstein, com a peça R.U.R. de Karl Capek onde o termo robô apareceu pela primeira vez, e vez ou outra ainda é com ficções onde as máquinas acabam por destruir a humanidade que as criou, vide filmes como Exterminador do Futuro do diretor James Cameron ou contos como Não tenho boca e preciso gritar de Harlan Ellison. Seja esse comportamento um reflexo do medo da industrialização da época da revolução industrial na Inglaterra ou de um comportamento judaico-cristão, a visão que se tinha (e ainda tem) era a de que as máquinas eram algo a ser temido.

O Exterminador do Futuro ou o ápice das tramas que envolvem máquinas se voltando contra seus criadores

Isaac Asimov pode não ter sido o primeiro autor a romper esse paradigma, o crédito fica pra Lester Del Rey com seu conto Helen O'Loy. No entanto foi ele quem criou as leis que consolidaram as narrativas em que criador e criatura podem coexistir pacificamente, as 3 Leis da Robótica:

1ª Lei: Um robô não pode ferir um ser humano ou, por inação, permitir que um ser humano sofra algum mal.
2ª Lei: Um robô deve obedecer as ordens que lhe sejam dadas por seres humanos exceto nos casos em que tais ordens entrem em conflito com a Primeira Lei.
3ª Lei: Um robô deve proteger sua própria existência desde que tal proteção não entre em conflito com a Primeira ou Segunda Leis.

Asimov considerava que, por mais que o conhecimento ofereça quaisquer perigos, a ignorância não é jamais a melhor resposta. A ignorância jamais seria uma bênção, há que se recorrer ao conhecimento e a pesquisa pra que se contornem os perigos da tecnologia. Suas leis da robótica configuram uma resposta racional pra uma questão de pura lógica no que se refere a como se programar máquinas inteligentes. Ainda que a ideia por trás das 3 leis levasse um tempo pra amadurecer por completo, Asimov começou a escrever seu primeiro conto com robôs, Robbie.

O conto traz a história de uma garotinha e seu robô, Robbie, uma espécie de babá mecânica. A narrativa se desenvolve mostrando o relacionamento da pequena Gloria com Robbie e como isso afeta o desenvolvimento da menina cuja distanciamento de outras crianças começa a deixar a mãe preocupada. Ao longo do conto os pais tomam a decisão de afastar Gloria de Robbie, o que frustra a criança a ponto de os pais terem que buscar alternativas pra tentar fazer a menina esquecer do robô. O conto conclui com os pais cedendo ao afeto que Gloria tem por Robbie em uma situação inusitada onde o robô acaba por salvar a vida da menina. A forma com que Robbie é retratado no conto consolida a quebra de paradigma das histórias onde as criações sempre se voltavam contra seus criadores.

Asimov seguiu escrevendo contos onde os robôs eram incapazes de causar dano a seus criadores e foi elaborando cada vez mais as leis que consolidaram a robótica de uma forma racional e lógica, sempre justificando a programação dos robôs das histórias em virtude das 3 leis. Não levou muito tempo pros contos se acumularem e a sugestão de uma coletânea surgir de seu editor e assim surgiu Eu, Robô, livro este que a Aleph republicou recentemente no Brasil.

Nova edição do clássico, cortesia da Editora Aleph e da Leparole Livraria
Eu, Robô interliga os contos de Asimov através da personagem Susan Calvin, psicóloga de robôs e uma das fundadoras da US Robotics, empresa que cria o cérebro positrônico, responsável por todo o sofisticado processamento de dados que os robôs de Asimov possuem e onde estão programadas as 3 leis. Pode-se dizer que tanto o cérebro positrônico como as 3 leis são parte fundamental de toda a mitologia que Asimov criou em suas histórias de robôs. A seguir tomo a liberdade de destacar os contos que mais chamam a atenção dentro do desenvolvimento das Leis da Robótica em Eu, Robô.


O conto Razão apresenta Cutie e suas reflexões cartesianas acerca de sua existência. Os personagens Mike Donovan e Greg Powell, responsáveis por testar os robôs em campo, montaram Cutie a bordo de uma estação espacial que recolhe raios cósmicos e retransmite na forma de energia pra sub-estações até chegar na Terra e em outras colônias do sistema solar. Cutie foi o primeiro robô a manifestar ciência da própria existência e com isso conjecturar sobre seu criador. Ele simplesmente não aceita que seres inferiores como Mile e Greg foram responsáveis por sua criação e funcionamento e decide adotar um mestre superior. Em Razão o mais interessante é que a 1ª lei impede que Cutie tome uma postura agressiva com a dupla de humanos, bem como o fato de que a primeira interpretação de Cutie seja tornar a central de onde vem as ordens uma divindade a qual passa a chamar de mestre, usando tal argumento pra convencer os demais robôs da estação e assim se tornar um profeta da sua própria fé.


Robby, o simpático robô do clássico Planeta Proibido lembra muito os robôs de Asimov

Herbie é outro robô da coletânea que se destaca no conto Mentiroso. Herbie era pra ser mais um modelo comum da linha de produção da US Robotics, não fosse por um detalhe nada convencional: ele consegue focalizar e interpretar as ondas do pensamento, em outras palavras, ele lê mentes. Herbie tinha sido projetado pra potencializar suas capacidades matemáticas mas, por algum motivo desconhecido, algo diferente ocorreu em sua produção, algo que cabe à direção da US Robotics com a ajuda da Dra. Susan Calvin descobrir. O interessante no conto é que Herbie não tem o menor interesse pela ciência e sim pela mente humana o que faz com que ele troque os números por longas conversas com os membros da direção da US Robotics e a Dra. Calvin. O ponto central no conto é como a leitura que ele faz das mentes dos personagens se relaciona com a 1ª Lei. Se você lesse a mente de alguém e pudesse contar pra um amigo em comum o que uma pessoa pensa da outra, será que as consequências seriam sempre positivas? E se tivesse que dizer algo desagradável, será que ferir o sentimento de terceiros apenas por ter a capacidade de ler mentes e frustrar as expectativas alheias não é algo negativo, que dirá até inútil? É a isso que se propõe o conto, contrapor a fantástica capacidade de Herbie com a 1ª Lei da Robótica.

Outro conto interessante é Evasão, nele o super computador da US Robotics, aqui chamado simplesmente de Cérebro, recebe a tarefa de terminar cálculos que envolvem a construção de uma nave capaz de propulsão interestelar e com isso efetuar a construção e teste da mesma. Sob monitoração da Dra. Susan Calvin, Cérebro resolve os cálculos e monta a nave conforme suas especificações. Vale destacar que Cérebro possui uma personalidade infantil, já que do ponto de vista da psicologia robótica, uma criança simplesmente faz uma tarefa, sem se questionar ou tentar entender a mesma, diferente de um adulto e suas racionalizações. O problema é que nossos não tão sortudos rapazes de teste dos contos anteriores, Mike e Greg, são incumbidos de testar a espaçonave e o teste começa com um panorama assustador, a nave não tem controles que eles possam manusear, tampouco comunicadores pra que eles pudessem interagir com a tripulação na Terra, a nave simplesmente se aciona e parte rumo ao espaço pro teste. A Dra. Susan não consegue nenhuma resposta do Cérebro que fica se evadindo de toda pergunta referente a viagem, apenas dizendo que os cálculos estão certos e tudo vai ficar bem no final mas não sem demonstrar alguma insegurança com o teste. Durante a viagem, Mike e Greg sofrem um efeito que Asimov descreve como uma experiência pós-vida onde Mike e Greg se veem passando pro outro lado numa alegoria ao que se pode definir como a morte propriamente dita. Ao termino dessa "viagem", Mike e Greg voltam a si a uma distância considerável de 300 mil parsecs ou o equivalente a 978 mil anos luz, fora de nossa galáxia. Logo em seguida a nave volta e eles revivem a experiência desconfortável da viagem de ida.

O supercomputador Titan é o que temos mais próximo ao Cérebro da US Robotics no momento mas segundo a Lei de Moore falta pouco pra chegarmos lá


O interessante nesse conto é que o Cérebro sabe que os viajantes experimentarão uma experiência em que uma "quase morte" acontecerá durante a viagem já que, devido aos princípios da Física Moderna, um corpo com massa não pode alcançar velocidades próximas da luz. Isso já ficava claro com a Relatividade de Einstein e mesmo se considerarmos a possibilidade de viagens a velocidades maiores que o limite relativista, a massa deixa de existir, logo quaisquer métodos adotados em uma eventual viagem do tipo implicam em uma desmaterialização da nave e dos viajantes. Tal resultado aparece nas equações de Cérebro que o fazem entender essa experiência de quase morte um empecilho pra que humanos façam esse tipo de viagem devido a interferência da 1ª Lei de não colocar vidas humanas em risco, no entanto, a tarefa que ele recebe exige que ele complete os cálculos, complete a nave e a teste com seres humanos. O Cérebro sabe que a experiência de se desintegrar os humanos não é algo permanente então consegue ignorar a 1ª Lei mas não sem ficar sem ter uma resposta lógica pra Dra. Calvin quando ela pergunta sobre os resultados da equação e o andamento dos testes. Isso deixa o Cérebro em conflito por saber que as cobaias deixarão de existir em forma física em parte do teste mas não impede ele de concluir sua tarefa.


Os contos Evidência e Conflito Evitável encerram a coletânea trazendo um personagem interessante: Stephen Byerley. Após todas as experiências relatadas ao longo do livro, fica uma sensação de que as 3 Leis da Robótica são capazes de resolver quaisquer situações envolvendo robôs e sua convivência com seres humanos. Com isso um robô sempre desempenhará as mais árduas tarefas com o melhor desempenho e sem nunca colocar em risco a convivência entre homem e máquina. Mas então por que não confiar tudo às máquinas e deixar elas administrarem tudo no lugar da humanidade já que eles são capazes de completar tarefas com o máximo de eficiência e sem nos ameaçar? No conto de abertura, Robbie, vemos o preconceito da mãe pra com o robô que cuida da filha, logo após o encerramento do conto ficamos sabendo que a atuação de robôs é proibida na Terra já que ainda existem aqueles que se dizem contra a presença de robôs atuando em nossa sociedade.


O Robô Cérebro no jogo indie Machinarium administra toda a cidade, cabe ao simpático robozinho do jogo descobrir o que aconteceu de errado com o administrador

A Dra. Susan Calvin parece ser a única simpatizante dos robôs a ponto de preferir eles aos humanos que os criaram. O que acontece no conto Evidência é que a Dra. Calvin é obrigada a avaliar um sujeito, Byerley, que não por acaso concorre a um cargo político importante e isso faz com que seu adversário nas urnas levante a suspeita de que ele é um robô. O adversário não tem interesse em perder a campanha pois sabe que Byerley é um progressista, sempre correto, sempre trabalhando em prol da comunidade. Evidência se desfecha com a Dra. Calvin tomando partido, ainda que guardando pra si sua própria opinião sobre a natureza de Byerley.

Em Conflito Evitável, temos Byerley, agora um administrador global, debatendo com a Dra. Susan Calvin se as máquinas administram o mundo corretamente. No conto ficamos sabendo que o mundo foi redesenhado em regiões e que cada administrador regional confia o desempenho de sua região a uma máquina semelhante ao Cérebro da US Robotics, que analisa os dados e define o que deve ser feito para otimizar a administração de cada região. Não existe desemprego, desperdício, excesso de produção, tudo é matematicamente pensado e calculado pra uma sociedade perfeita. O que Byerley percebe é que ultimamente as máquinas vem errando algumas de suas avaliações, nada que atrapalhe o desempenho administrativo de cada região, mas algo que não seria esperado de uma máquina. Isso faz ele pensar se não estamos a beira de um conflito inevitável como as várias guerras que a humanidade travou ao longo de sua história visto que ainda existem grupos na sociedade que não admitem o convívio com máquinas. Claro que no final, a Dra. Calvin tem uma excelente resposta para todos os erros, demonstrando com a lógica das 3 Leis da Robótica o motivo para essa disputa entre humanidade e máquina ser um Conflito Evitável.

Isaac Asimov, o bom doutor ou o homem que deu aos robôs e as máquinas uma imagem mais racional e positiva, se eu fosse bonito como ele já me dava por satisfeito

Eu, Robô de Isaac Asimov debate ao longo de suas páginas a relação entre humanos e robôs sob vários aspectos, sempre com as 3 Leis da Robótica se sobressaindo nos conflitos entre homem e máquina. A impressão que fica no final é que a lógica de Asimov supera a ignorância daqueles que acreditam que evitar o conhecimento é a melhor resposta. No entanto, fica uma sensação, principalmente após os últimos 2 contos, de que a humanidade, com todas as suas falhas e imperfeições, foi superada pela sua criação, algo que cabe ao leitor no final, julgar se considera válido ou não. A Dra. Susan Calvin tem sua resposta.


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Daniel Rockenbach, um estranho numa terra estranha que decidiu compartilhar suas leituras sobre ficção científica em suas mais diversas manifestações.

Seu instagram é @danielrockenbach.