Antes de se começar a analisar Eu, Robô de Isaac Asimov há que se considerar Frankenstein, de Mary Shelley. Na obra, o "prometeu moderno" rouba o conhecimento que deveria pertencer apenas aos deuses e dá a vida a uma criatura que, por menos inteligente que pareça, tem plena ciência da própria existência. Isso cria o conflito da narrativa, a percepção do monstro de sua própria criação, levando ao desfecho onde o seu criador, Victor Frankenstein, é devidamente punido por seu atrevimento ao roubar a centelha dos deuses, o conhecimento, tal qual fez Prometeu na mitologia grega.
Até o começo do século XX, as máquinas ou mesmo os robôs eram vistos da mesma forma, como abusos do homem perante a natureza e suas leis implacáveis. A ignorância é uma bênção diz o ditado e era assim que as ficções tratavam quaisquer engenhos criados pela mão do homem, como pecados que cedo ou tarde teriam a devida punição. Foi assim com Frankenstein, com a peça R.U.R. de Karl Capek onde o termo robô apareceu pela primeira vez, e vez ou outra ainda é com ficções onde as máquinas acabam por destruir a humanidade que as criou, vide filmes como Exterminador do Futuro do diretor James Cameron ou contos como Não tenho boca e preciso gritar de Harlan Ellison. Seja esse comportamento um reflexo do medo da industrialização da época da revolução industrial na Inglaterra ou de um comportamento judaico-cristão, a visão que se tinha (e ainda tem) era a de que as máquinas eram algo a ser temido.
O Exterminador do Futuro ou o ápice das tramas que envolvem máquinas se voltando contra seus criadores |
Isaac Asimov pode não ter sido o primeiro autor a romper esse paradigma, o crédito fica pra Lester Del Rey com seu conto Helen O'Loy. No entanto foi ele quem criou as leis que consolidaram as narrativas em que criador e criatura podem coexistir pacificamente, as 3 Leis da Robótica:
1ª Lei: Um robô
não pode ferir um ser humano ou, por inação, permitir que um ser humano sofra
algum mal.
2ª Lei: Um robô
deve obedecer as ordens que lhe sejam dadas por seres humanos exceto nos casos
em que tais ordens entrem em conflito com a Primeira Lei.
3ª Lei: Um robô
deve proteger sua própria existência desde que tal proteção não entre em
conflito com a Primeira ou Segunda Leis.
Nova edição do clássico, cortesia da Editora Aleph e da Leparole Livraria |
O conto Razão apresenta Cutie e suas reflexões cartesianas acerca de sua existência. Os personagens Mike Donovan e Greg Powell, responsáveis por testar os robôs em campo, montaram Cutie a bordo de uma estação espacial que recolhe raios cósmicos e retransmite na forma de energia pra sub-estações até chegar na Terra e em outras colônias do sistema solar. Cutie foi o primeiro robô a manifestar ciência da própria existência e com isso conjecturar sobre seu criador. Ele simplesmente não aceita que seres inferiores como Mile e Greg foram responsáveis por sua criação e funcionamento e decide adotar um mestre superior. Em Razão o mais interessante é que a 1ª lei impede que Cutie tome uma postura agressiva com a dupla de humanos, bem como o fato de que a primeira interpretação de Cutie seja tornar a central de onde vem as ordens uma divindade a qual passa a chamar de mestre, usando tal argumento pra convencer os demais robôs da estação e assim se tornar um profeta da sua própria fé.
Robby, o simpático robô do clássico Planeta Proibido lembra muito os robôs de Asimov |
O supercomputador Titan é o que temos mais próximo ao Cérebro da US Robotics no momento mas segundo a Lei de Moore falta pouco pra chegarmos lá |
Os contos Evidência e Conflito Evitável encerram a coletânea trazendo um personagem interessante: Stephen Byerley. Após todas as experiências relatadas ao longo do livro, fica uma sensação de que as 3 Leis da Robótica são capazes de resolver quaisquer situações envolvendo robôs e sua convivência com seres humanos. Com isso um robô sempre desempenhará as mais árduas tarefas com o melhor desempenho e sem nunca colocar em risco a convivência entre homem e máquina. Mas então por que não confiar tudo às máquinas e deixar elas administrarem tudo no lugar da humanidade já que eles são capazes de completar tarefas com o máximo de eficiência e sem nos ameaçar? No conto de abertura, Robbie, vemos o preconceito da mãe pra com o robô que cuida da filha, logo após o encerramento do conto ficamos sabendo que a atuação de robôs é proibida na Terra já que ainda existem aqueles que se dizem contra a presença de robôs atuando em nossa sociedade.
O Robô Cérebro no jogo indie Machinarium administra toda a cidade, cabe ao simpático robozinho do jogo descobrir o que aconteceu de errado com o administrador |
A Dra. Susan Calvin parece ser a única simpatizante dos robôs a ponto de preferir eles aos humanos que os criaram. O que acontece no conto Evidência é que a Dra. Calvin é obrigada a avaliar um sujeito, Byerley, que não por acaso concorre a um cargo político importante e isso faz com que seu adversário nas urnas levante a suspeita de que ele é um robô. O adversário não tem interesse em perder a campanha pois sabe que Byerley é um progressista, sempre correto, sempre trabalhando em prol da comunidade. Evidência se desfecha com a Dra. Calvin tomando partido, ainda que guardando pra si sua própria opinião sobre a natureza de Byerley.
Em Conflito Evitável, temos Byerley, agora um administrador global, debatendo com a Dra. Susan Calvin se as máquinas administram o mundo corretamente. No conto ficamos sabendo que o mundo foi redesenhado em regiões e que cada administrador regional confia o desempenho de sua região a uma máquina semelhante ao Cérebro da US Robotics, que analisa os dados e define o que deve ser feito para otimizar a administração de cada região. Não existe desemprego, desperdício, excesso de produção, tudo é matematicamente pensado e calculado pra uma sociedade perfeita. O que Byerley percebe é que ultimamente as máquinas vem errando algumas de suas avaliações, nada que atrapalhe o desempenho administrativo de cada região, mas algo que não seria esperado de uma máquina. Isso faz ele pensar se não estamos a beira de um conflito inevitável como as várias guerras que a humanidade travou ao longo de sua história visto que ainda existem grupos na sociedade que não admitem o convívio com máquinas. Claro que no final, a Dra. Calvin tem uma excelente resposta para todos os erros, demonstrando com a lógica das 3 Leis da Robótica o motivo para essa disputa entre humanidade e máquina ser um Conflito Evitável.
Isaac Asimov, o bom doutor ou o homem que deu aos robôs e as máquinas uma imagem mais racional e positiva, se eu fosse bonito como ele já me dava por satisfeito |
Eu, Robô de Isaac Asimov debate ao longo de suas páginas a relação entre humanos e robôs sob vários aspectos, sempre com as 3 Leis da Robótica se sobressaindo nos conflitos entre homem e máquina. A impressão que fica no final é que a lógica de Asimov supera a ignorância daqueles que acreditam que evitar o conhecimento é a melhor resposta. No entanto, fica uma sensação, principalmente após os últimos 2 contos, de que a humanidade, com todas as suas falhas e imperfeições, foi superada pela sua criação, algo que cabe ao leitor no final, julgar se considera válido ou não. A Dra. Susan Calvin tem sua resposta.
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--------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------Daniel Rockenbach, um estranho numa terra estranha que decidiu compartilhar suas leituras sobre ficção científica em suas mais diversas manifestações.
Seu instagram é @danielrockenbach.