3 de março de 2015

Revisitando Eu, Robô

Antes de se começar a analisar Eu, Robô de Isaac Asimov há que se considerar Frankenstein, de Mary Shelley. Na obra, o "prometeu moderno" rouba o conhecimento que deveria pertencer apenas aos deuses e dá a vida a uma criatura que, por menos inteligente que pareça, tem plena ciência da própria existência. Isso cria o conflito da narrativa, a percepção do monstro de sua própria criação, levando ao desfecho onde o seu criador, Victor Frankenstein, é devidamente punido por seu atrevimento ao roubar a centelha dos deuses, o conhecimento, tal qual fez Prometeu na mitologia grega.

Frankenstein, interpretado pelo eterno Boris Karloff

Até o começo do século XX, as máquinas ou mesmo os robôs eram vistos da mesma forma, como abusos do homem perante a natureza e suas leis implacáveis. A ignorância é uma bênção diz o ditado e era assim que as ficções tratavam quaisquer engenhos criados pela mão do homem, como pecados que cedo ou tarde teriam a devida punição. Foi assim com Frankenstein, com a peça R.U.R. de Karl Capek onde o termo robô apareceu pela primeira vez, e vez ou outra ainda é com ficções onde as máquinas acabam por destruir a humanidade que as criou, vide filmes como Exterminador do Futuro do diretor James Cameron ou contos como Não tenho boca e preciso gritar de Harlan Ellison. Seja esse comportamento um reflexo do medo da industrialização da época da revolução industrial na Inglaterra ou de um comportamento judaico-cristão, a visão que se tinha (e ainda tem) era a de que as máquinas eram algo a ser temido.

O Exterminador do Futuro ou o ápice das tramas que envolvem máquinas se voltando contra seus criadores

Isaac Asimov pode não ter sido o primeiro autor a romper esse paradigma, o crédito fica pra Lester Del Rey com seu conto Helen O'Loy. No entanto foi ele quem criou as leis que consolidaram as narrativas em que criador e criatura podem coexistir pacificamente, as 3 Leis da Robótica:

1ª Lei: Um robô não pode ferir um ser humano ou, por inação, permitir que um ser humano sofra algum mal.
2ª Lei: Um robô deve obedecer as ordens que lhe sejam dadas por seres humanos exceto nos casos em que tais ordens entrem em conflito com a Primeira Lei.
3ª Lei: Um robô deve proteger sua própria existência desde que tal proteção não entre em conflito com a Primeira ou Segunda Leis.

Asimov considerava que, por mais que o conhecimento ofereça quaisquer perigos, a ignorância não é jamais a melhor resposta. A ignorância jamais seria uma bênção, há que se recorrer ao conhecimento e a pesquisa pra que se contornem os perigos da tecnologia. Suas leis da robótica configuram uma resposta racional pra uma questão de pura lógica no que se refere a como se programar máquinas inteligentes. Ainda que a ideia por trás das 3 leis levasse um tempo pra amadurecer por completo, Asimov começou a escrever seu primeiro conto com robôs, Robbie.

O conto traz a história de uma garotinha e seu robô, Robbie, uma espécie de babá mecânica. A narrativa se desenvolve mostrando o relacionamento da pequena Gloria com Robbie e como isso afeta o desenvolvimento da menina cuja distanciamento de outras crianças começa a deixar a mãe preocupada. Ao longo do conto os pais tomam a decisão de afastar Gloria de Robbie, o que frustra a criança a ponto de os pais terem que buscar alternativas pra tentar fazer a menina esquecer do robô. O conto conclui com os pais cedendo ao afeto que Gloria tem por Robbie em uma situação inusitada onde o robô acaba por salvar a vida da menina. A forma com que Robbie é retratado no conto consolida a quebra de paradigma das histórias onde as criações sempre se voltavam contra seus criadores.

Asimov seguiu escrevendo contos onde os robôs eram incapazes de causar dano a seus criadores e foi elaborando cada vez mais as leis que consolidaram a robótica de uma forma racional e lógica, sempre justificando a programação dos robôs das histórias em virtude das 3 leis. Não levou muito tempo pros contos se acumularem e a sugestão de uma coletânea surgir de seu editor e assim surgiu Eu, Robô, livro este que a Aleph republicou recentemente no Brasil.

Nova edição do clássico, cortesia da Editora Aleph e da Leparole Livraria
Eu, Robô interliga os contos de Asimov através da personagem Susan Calvin, psicóloga de robôs e uma das fundadoras da US Robotics, empresa que cria o cérebro positrônico, responsável por todo o sofisticado processamento de dados que os robôs de Asimov possuem e onde estão programadas as 3 leis. Pode-se dizer que tanto o cérebro positrônico como as 3 leis são parte fundamental de toda a mitologia que Asimov criou em suas histórias de robôs. A seguir tomo a liberdade de destacar os contos que mais chamam a atenção dentro do desenvolvimento das Leis da Robótica em Eu, Robô.


O conto Razão apresenta Cutie e suas reflexões cartesianas acerca de sua existência. Os personagens Mike Donovan e Greg Powell, responsáveis por testar os robôs em campo, montaram Cutie a bordo de uma estação espacial que recolhe raios cósmicos e retransmite na forma de energia pra sub-estações até chegar na Terra e em outras colônias do sistema solar. Cutie foi o primeiro robô a manifestar ciência da própria existência e com isso conjecturar sobre seu criador. Ele simplesmente não aceita que seres inferiores como Mile e Greg foram responsáveis por sua criação e funcionamento e decide adotar um mestre superior. Em Razão o mais interessante é que a 1ª lei impede que Cutie tome uma postura agressiva com a dupla de humanos, bem como o fato de que a primeira interpretação de Cutie seja tornar a central de onde vem as ordens uma divindade a qual passa a chamar de mestre, usando tal argumento pra convencer os demais robôs da estação e assim se tornar um profeta da sua própria fé.


Robby, o simpático robô do clássico Planeta Proibido lembra muito os robôs de Asimov

Herbie é outro robô da coletânea que se destaca no conto Mentiroso. Herbie era pra ser mais um modelo comum da linha de produção da US Robotics, não fosse por um detalhe nada convencional: ele consegue focalizar e interpretar as ondas do pensamento, em outras palavras, ele lê mentes. Herbie tinha sido projetado pra potencializar suas capacidades matemáticas mas, por algum motivo desconhecido, algo diferente ocorreu em sua produção, algo que cabe à direção da US Robotics com a ajuda da Dra. Susan Calvin descobrir. O interessante no conto é que Herbie não tem o menor interesse pela ciência e sim pela mente humana o que faz com que ele troque os números por longas conversas com os membros da direção da US Robotics e a Dra. Calvin. O ponto central no conto é como a leitura que ele faz das mentes dos personagens se relaciona com a 1ª Lei. Se você lesse a mente de alguém e pudesse contar pra um amigo em comum o que uma pessoa pensa da outra, será que as consequências seriam sempre positivas? E se tivesse que dizer algo desagradável, será que ferir o sentimento de terceiros apenas por ter a capacidade de ler mentes e frustrar as expectativas alheias não é algo negativo, que dirá até inútil? É a isso que se propõe o conto, contrapor a fantástica capacidade de Herbie com a 1ª Lei da Robótica.

Outro conto interessante é Evasão, nele o super computador da US Robotics, aqui chamado simplesmente de Cérebro, recebe a tarefa de terminar cálculos que envolvem a construção de uma nave capaz de propulsão interestelar e com isso efetuar a construção e teste da mesma. Sob monitoração da Dra. Susan Calvin, Cérebro resolve os cálculos e monta a nave conforme suas especificações. Vale destacar que Cérebro possui uma personalidade infantil, já que do ponto de vista da psicologia robótica, uma criança simplesmente faz uma tarefa, sem se questionar ou tentar entender a mesma, diferente de um adulto e suas racionalizações. O problema é que nossos não tão sortudos rapazes de teste dos contos anteriores, Mike e Greg, são incumbidos de testar a espaçonave e o teste começa com um panorama assustador, a nave não tem controles que eles possam manusear, tampouco comunicadores pra que eles pudessem interagir com a tripulação na Terra, a nave simplesmente se aciona e parte rumo ao espaço pro teste. A Dra. Susan não consegue nenhuma resposta do Cérebro que fica se evadindo de toda pergunta referente a viagem, apenas dizendo que os cálculos estão certos e tudo vai ficar bem no final mas não sem demonstrar alguma insegurança com o teste. Durante a viagem, Mike e Greg sofrem um efeito que Asimov descreve como uma experiência pós-vida onde Mike e Greg se veem passando pro outro lado numa alegoria ao que se pode definir como a morte propriamente dita. Ao termino dessa "viagem", Mike e Greg voltam a si a uma distância considerável de 300 mil parsecs ou o equivalente a 978 mil anos luz, fora de nossa galáxia. Logo em seguida a nave volta e eles revivem a experiência desconfortável da viagem de ida.

O supercomputador Titan é o que temos mais próximo ao Cérebro da US Robotics no momento mas segundo a Lei de Moore falta pouco pra chegarmos lá


O interessante nesse conto é que o Cérebro sabe que os viajantes experimentarão uma experiência em que uma "quase morte" acontecerá durante a viagem já que, devido aos princípios da Física Moderna, um corpo com massa não pode alcançar velocidades próximas da luz. Isso já ficava claro com a Relatividade de Einstein e mesmo se considerarmos a possibilidade de viagens a velocidades maiores que o limite relativista, a massa deixa de existir, logo quaisquer métodos adotados em uma eventual viagem do tipo implicam em uma desmaterialização da nave e dos viajantes. Tal resultado aparece nas equações de Cérebro que o fazem entender essa experiência de quase morte um empecilho pra que humanos façam esse tipo de viagem devido a interferência da 1ª Lei de não colocar vidas humanas em risco, no entanto, a tarefa que ele recebe exige que ele complete os cálculos, complete a nave e a teste com seres humanos. O Cérebro sabe que a experiência de se desintegrar os humanos não é algo permanente então consegue ignorar a 1ª Lei mas não sem ficar sem ter uma resposta lógica pra Dra. Calvin quando ela pergunta sobre os resultados da equação e o andamento dos testes. Isso deixa o Cérebro em conflito por saber que as cobaias deixarão de existir em forma física em parte do teste mas não impede ele de concluir sua tarefa.


Os contos Evidência e Conflito Evitável encerram a coletânea trazendo um personagem interessante: Stephen Byerley. Após todas as experiências relatadas ao longo do livro, fica uma sensação de que as 3 Leis da Robótica são capazes de resolver quaisquer situações envolvendo robôs e sua convivência com seres humanos. Com isso um robô sempre desempenhará as mais árduas tarefas com o melhor desempenho e sem nunca colocar em risco a convivência entre homem e máquina. Mas então por que não confiar tudo às máquinas e deixar elas administrarem tudo no lugar da humanidade já que eles são capazes de completar tarefas com o máximo de eficiência e sem nos ameaçar? No conto de abertura, Robbie, vemos o preconceito da mãe pra com o robô que cuida da filha, logo após o encerramento do conto ficamos sabendo que a atuação de robôs é proibida na Terra já que ainda existem aqueles que se dizem contra a presença de robôs atuando em nossa sociedade.


O Robô Cérebro no jogo indie Machinarium administra toda a cidade, cabe ao simpático robozinho do jogo descobrir o que aconteceu de errado com o administrador

A Dra. Susan Calvin parece ser a única simpatizante dos robôs a ponto de preferir eles aos humanos que os criaram. O que acontece no conto Evidência é que a Dra. Calvin é obrigada a avaliar um sujeito, Byerley, que não por acaso concorre a um cargo político importante e isso faz com que seu adversário nas urnas levante a suspeita de que ele é um robô. O adversário não tem interesse em perder a campanha pois sabe que Byerley é um progressista, sempre correto, sempre trabalhando em prol da comunidade. Evidência se desfecha com a Dra. Calvin tomando partido, ainda que guardando pra si sua própria opinião sobre a natureza de Byerley.

Em Conflito Evitável, temos Byerley, agora um administrador global, debatendo com a Dra. Susan Calvin se as máquinas administram o mundo corretamente. No conto ficamos sabendo que o mundo foi redesenhado em regiões e que cada administrador regional confia o desempenho de sua região a uma máquina semelhante ao Cérebro da US Robotics, que analisa os dados e define o que deve ser feito para otimizar a administração de cada região. Não existe desemprego, desperdício, excesso de produção, tudo é matematicamente pensado e calculado pra uma sociedade perfeita. O que Byerley percebe é que ultimamente as máquinas vem errando algumas de suas avaliações, nada que atrapalhe o desempenho administrativo de cada região, mas algo que não seria esperado de uma máquina. Isso faz ele pensar se não estamos a beira de um conflito inevitável como as várias guerras que a humanidade travou ao longo de sua história visto que ainda existem grupos na sociedade que não admitem o convívio com máquinas. Claro que no final, a Dra. Calvin tem uma excelente resposta para todos os erros, demonstrando com a lógica das 3 Leis da Robótica o motivo para essa disputa entre humanidade e máquina ser um Conflito Evitável.

Isaac Asimov, o bom doutor ou o homem que deu aos robôs e as máquinas uma imagem mais racional e positiva, se eu fosse bonito como ele já me dava por satisfeito

Eu, Robô de Isaac Asimov debate ao longo de suas páginas a relação entre humanos e robôs sob vários aspectos, sempre com as 3 Leis da Robótica se sobressaindo nos conflitos entre homem e máquina. A impressão que fica no final é que a lógica de Asimov supera a ignorância daqueles que acreditam que evitar o conhecimento é a melhor resposta. No entanto, fica uma sensação, principalmente após os últimos 2 contos, de que a humanidade, com todas as suas falhas e imperfeições, foi superada pela sua criação, algo que cabe ao leitor no final, julgar se considera válido ou não. A Dra. Susan Calvin tem sua resposta.


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Daniel Rockenbach, um estranho numa terra estranha que decidiu compartilhar suas leituras sobre ficção científica em suas mais diversas manifestações.

Seu instagram é @danielrockenbach.