O que é ficção científica?

Para entendermos a ficção científica enquanto gênero literário, temos que assumir uma série de pressupostos. A ficção científica trata de narrativas nas quais um conhecimento científico mínimo dá o embasamento para o desenvolvimento da trama. É essencial que o mundo natural faça sentido seguindo leis estabelecidas pela ciência, mesmo quando a referência seja apenas teoria ou modelo científico ou mesmo uma extrapolação destes.

Um erro comum é associar a ficção científica apenas às ciências aplicadas ou naturais, ignorando as ciências humanas. As distopias presumem realidades nas quais a sociedade como um todo tomou caminhos diferentes da nossa sociedade. 

Um exemplo de distopia que aborda o lado das ciências humanas na ficção científica é Fahrenheit 451 de Ray Bradbury. Nele, um futuro alternativo trata de uma sociedade que baniu a leitura escrita, considerando proibida a posse e circulação de livros, modificando com isso a função do bombeiro que em nossa realidade apaga incêndios e salva vidas e nessa realidade incendeia os livros confiscados pelo Estado. Bradbury não trata em seu texto de aspectos físicos, matemáticos ou biológicos e sim de filosofia, história e sociologia no desenvolvimento da narrativa.

Aldous Huxley
Existe uma interpretação da qual discordo que distingue a ficção científica em hard, associada às ciências aplicadas, esoft, associada às ciências humanas. Considerar essa divisão implica num lugar comum que alguns leitores assumem ao considerar a ficção hard mais profunda e importante que a soft, algo que generaliza e tira o mérito de obras importantes como Admirável Mundo Novo de Aldous Huxley. Este livro, ao mesmo tempo em que é uma distopia que trata da instrumentalização e banalização da sociedade, aborda conceitos sofisticados de genética em seu texto, permitindo com isso uma interpretação mais ampla do conhecimento científico, seja ele das humanas ou das ciências aplicadas, elevando a sofisticação do texto.

Outro pressuposto é que a ficção científica necessariamente pertence ao futuro, espaço ou realidades alternativas. A ficção também pode abranger períodos históricos no passado interpretando momentos da História de acordo com a visão do autor. 

Memórias encontradas numa banheira de Stanislaw Lem mostra um futuro no qual arqueólogos estudam o século XX, o último século da existência do papel impresso que acabou sendo dizimado por uma bactéria e regrediu por séculos o progresso da humanidade. Com sondas temporais e a ajuda de um manuscrito impresso encontrado intacto em uma banheira, os arqueólogos aprendem mais sobre a sociedade ocidental do século XX cujo Deus era o capital (interpretado pelos arqueólogos do futuro como kaapetal) e sua adoração era feita em templos chamados bancos. Esse prólogo mostra por meio da interpretação dos arqueólogos do futuro como diferentes períodos históricos podem ser revisitados com outro olhar, gerando uma nova interpretação dos fatos. Após o prólogo passamos a acompanhar o autor das memórias em sua jornada kafkiana dentro de um importante templo na cultura ocidental, o Pentágono.

Arthur Clarke
Estes pressupostos são a essência da ficção científica moderna, que começou a surgir nas publicações de editores como Hugo Gernsback e John W. Campbell cujas revistas pulppublicaram os primeiros contos de grandes autores como Isaac Asimov e Arthur C. Clarke. Antes disso a ficção científica teve seu início propriamente dito com Julio Verne que, ainda que especulasse bastante em cima do conhecimento científico de sua época, foi capaz de produzir textos com relativa precisão científica em sua narrativa, algo que H.G.Wells aprimorou anos depois. Existem outros autores anteriores a Verne cujos textos continham elementos básicos vistos na ficção científica, no entanto estes não desenvolveram suas obras como Verne fez, logo, nada mais justo que considerá-lo o patrono do gênero. 

Todavia o início do século XX trouxe a ficção científica a um nível mais elementar, próximo ao da fantasia. As aventuras de Flash Gordon, Buck Rogers e John Carter presumiam a fuga do herói a uma realidade diferente, fantástica, onde o protagonista é capaz de grandes feitos sem muita explicação ou embasamento científico, apenas pelo escapismo e entretenimento. Nada contra esse tipo de narrativa, o problema é que ela se aproxima mais da fantasia propriamente dita que da ciência, o que traz à tona a necessidade da distinção entre ficção científica e fantasia.

Na fantasia o texto propõe um escapismo ao leitor, geralmente para um mundo onde o sentido ou a ordem natural das coisas podem ser invertidos de acordo com a vontade do autor. Uma realidade onde a magia acontece sem necessidade de explicação ou justificativa além da força de vontade ou predestinação, o mesmo vale para seres mitológicos ou fantásticos como elfos e dragões ou mesmo mundos inteiros como a Terra-Média de Tolkien. Claro que isso não diminui o valor da fantasia, ela pode ser sofisticada a ponto de conter em seu texto críticas à nossa sociedade em clássicos da literatura como As Viagens de Gulliver de Jonathan Swift onde o autor usa a sociedade de Liliput como metáfora para discutir as incoerências da sociedade da época. São inúmeros os exemplos de fantasias sofisticadas ou mesmo descompromissadas mas cuja riqueza literária justifica toda a sua admiração.

Guerra nas Estrelas
(desculpe, cresci com o título traduzido,
não com Star Wars) 
Pessoalmente adoro a literatura fantástica ou mesmo a ficção científica menos comprometida dos quadrinhos ou de Guerra nas Estrelas (desculpe, cresci com o título traduzido, não com Star Wars) mas meu intuito neste espaço é discutir a ficção científica moderna de autores como Asimov, Clarke e Heinlein, de filmes como 2001 ou Lunar, séries como Jornada nas Estrelas ou até jogos como Mass Effect.

Vejo a ficção científica como um misto de entretenimento e inspiração, em que podemos exercitar nossas mentes em um escapismo produtivo que, mesmo que não acerte em suas previsões, nos ajude a pensar e entender o porquê das coisas. Mesmo que viagens temporais ou viagens em velocidades superiores à luz sejam impossíveis para corpos físicos, é válido discutir os motivos os quais a física moderna dita que proíbam tais façanhas. Aí fica claro o caráter didático de ficções como Jornada nas Estrelas. Por mais impossível que seja uma Enterprise circulando por aí, é interessante aprender mesmo com os erros desse tipo de obra. Pessoalmente me encantam as ficções que, cientes das limitações das teorias contemporâneas, tentam trabalhar narrativas cujo tema abraça as leis da natureza no desenvolvimento da narrativa.


Referências:

  • ASIMOV, Isaac. No mundo da ficção científica. Rio de Janeiro: Editora Francisco Alves, 1984
  • ALLEN, L. David. No mundo da ficção científica. CUNHA, Fausto. A ficção científica no Brasil. São Paulo: Summus Editorial, 1974.



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Daniel Rockenbach, um estranho numa terra estranha que decidiu compartilhar suas leituras sobre ficção científica em suas mais diversas manifestações.

Seu instagram é @danielrockenbach.